Com a aproximação do período de divulgação do índice do Fator Acidentário de Prevenção (FAP), ressurgem as controvérsias quanto a sua forma de cálculo. Diversos são os questionamentos com relação à legitimidade dos critérios adotados e várias são as dúvidas quanto às informações consideradas na fórmula. Mas, uma vez apresentado o inconformismo, quais são os seus efeitos e qual a sua extensão?
Remanescem incertezas em torno da incidência (ou não) de multas (moratórias e punitivas) sobre o valor relativo à diferença entre a parcela incontroversa da contribuição previdenciária pelos Riscos Ambientais do Trabalho (RAT) – isto é, a contribuição devida pela aplicação da alíquota base do RAT multiplicada pelo FAP mínimo – e a parcela controversa, que corresponde àquele valor que seria devido pela aplicação do índice do FAP como originalmente divulgado e que pode ser objeto da contestação administrativa.
O FAP é um índice multiplicador, recorde-se, variável entre 0,5 (meio) e 2 (dois), a ser aplicado sobre a alíquota da contribuição do RAT devida por cada estabelecimento, podendo reduzi-la em até 50% (cinquenta por cento) ou majorá-la em até 100% (cem por cento). O referido fator tem previsão na Lei n° 10.666/2003 e deve ser calculado com base no desempenho do contribuinte na prevenção de acidentes de trabalho, apurado comparativamente com os demais contribuintes que desempenham a mesma atividade econômica, de modo que aqueles mais eficientes na prevenção dos acidentes tenham índice menor do que os que demostraram menor eficiência e acumularam piores indicadores nas ocorrências de acidentes e doenças correlatas e decorrentes das atividades laborais de seus colaboradores.
De se notar que a legislação atribui ao FAP uma natureza nitidamente extrafiscal, servindo como norma indutora de comportamentos, tendente a incentivar os contribuintes a envidarem esforços e destinarem maior volume de recursos na prevenção de acidentes no ambiente de trabalho.
A sistemática de tributação instituída pela legislação tem como finalidade promover o aumento dos investimentos em segurança do trabalho e, assim, contribuir, primus, para a redução do número de acidentes e doenças ocupacionais que acometem os trabalhadores brasileiros, na busca de maior concreção aos direitos de proteção ao trabalhador garantidos pelo art. 7º da CR/88, em especial, o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, insculpido no inciso XXII do referido artigo, assim como, secundus, evitar a oneração do regime geral da previdência social.
Como instrumento para a indução deste comportamento (a saber, a realização de investimentos pelo empregador na busca de garantir um ambiente de trabalho mais seguro), a Lei n° 10.666/2003 determina que o cálculo do FAP – que impacta diretamente a alíquota RAT e, portanto, o custo previdenciário a que está submetido o contribuinte – deve ser realizado em conformidade com os índices de frequência, gravidade e onerosidade atribuídos a cada estabelecimento do contribuinte, calculados segundo metodologia aprovada pelo Conselho Nacional de Previdência Social.
O índice é apurado anualmente considerando elementos fáticos (especialmente os acidentes de trabalho e benefícios previdenciários decorrentes de afastamentos) relativos aos dois anos anteriores àquele no qual o índice é divulgado, devendo ser aplicado no ano imediatamente subsequente.
Caso o contribuinte discorde dos elementos utilizados para o cálculo do FAP, é cabível a apresentação de contestação administrativa. Inaugura-se, assim, processo administrativo de revisão, com a indesviável convergência das garantias inerentes ao processo, em sua genuína acepção, nos termos do art. 5º, LV, da Lex Mater.
A apresentação, pelo contribuinte, de contestação administrativa ao índice FAP que lhe foi imputado é dotado de efeito suspensivo, conforme previsão expressa do artigo 202-B, §3º, do Decreto n° 3.048/1999. Ainda que ausente a mencionada previsão específica, os efeitos suspensivos à contestação defluiriam diretamente do disposto no art. 151, III do Código Tributário Nacional (CTN), que prevê a suspensão da exigibilidade do crédito tributário por força de reclamações e recursos apresentados nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo.
A legislação infralegal, contudo, não indica de forma expressa o alcance da suspensão de exigibilidade decorrente da contestação administrativa do FAP. Neste particular, curioso observar haver divergência de entendimento entre a Receita Federal do Brasil (RFB) e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), ambos órgãos vinculados ao Ministério da Economia.
A RFB, órgão responsável pela fiscalização e pelo lançamento das contribuições previdenciárias, dentre as quais se inclui a contribuição RAT, entende que a suspensão da exigibilidade decorrente da contestação administrativa ao índice FAP atribuído ao contribuinte somente abarca os valores que excedem aqueles que seriam devidos por força da aplicação da alíquota-base do RAT, considerando-se o FAP equivalente a 1.
Por outro lado, a PGFN, órgão responsável pela representação judicial da União em assuntos tributários, dentre os quais se incluem as questões relativas às contribuições previdenciárias, inclusive a contribuição ao RAT, já exarou parecer (Parecer PGFN/CAT 311/2011) no qual sustenta que a suspensão da exigibilidade decorrente da contestação administrativa do FAP abarca toda a contribuição ao RAT (abarcando inclusive a parcela incontroversa, não abrangida pela contestação administrativa).
Divergimos frontalmente do entendimento da RFB acerca da matéria e parcialmente da posição manifestada pela PGFN (embora mais favorável ao contribuinte). Com efeito, venia concessa, a posição manifesta pela RFB despreza o fato de que da contestação pode resultar um FAP menor do que 1, enquanto o entendimento exarado pela PFN descura que o FAP jamais será menor que 0,5 (portanto, existe uma parcela incontroversa que deve ser paga).
Em nosso entendimento, a contestação administrativa tem o condão de suspender a exigibilidade da integralidade dos valores que foram objeto de contestação pelo contribuinte – o que não corresponderá à integralidade dos valores que seriam devidos a título de contribuição ao RAT, tampouco se limitará, necessariamente, ao resultado da aplicação do fator 1. Recorde-se que o menor índice FAP atribuível a um contribuinte é o índice 0,5 (meio), situação na qual ainda haverá algum valor devido a título de contribuição por RAT, correspondente à aplicação de 50% da alíquota (1%, 2% ou 3%) relativa ao grau de risco (respectivamente, leve, médio ou grave) inerente à atividade que absorve a maior parte dos segurados em cada estabelecimento, conforme enquadramento feito pelo contribuinte.
Apesar de reconhecer, ainda que de forma parcial e incompleta, a suspensão da exigibilidade do RAT em decorrência da contestação do FAP, a RFB entende ser devida a multa moratória sobre os valores porventura não recolhidos (ou recolhidos a menor) pelo contribuinte em decorrência da aplicação de FAP inferior ao que lhe foi atribuído. Este entendimento, absolutamente paradoxal, encontra-se positivado nos artigos 72, §§15, 16 e 17, 402 e 403, da Instrução Normativa nº 971/2009. Flagrante o despautério! Se a contestação tem efeito suspensivo, não haverá mora do contribuinte impugnante.
A despeito da contraditio in terminis ao se reconhecer simultaneamente a suspensão da exigibilidade e a mora, a posição da RFB já foi acatada em sede administrativa, conforme decisão proferida pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) no Processo Administrativo nº 15586.720125/2013-16 (Acórdão 2401-004.931).
Este entendimento parece decorrer de uma interpretação restritiva, isolada e, a nosso sentir, antecipe-se, equivocada, da previsão constante do artigo 63, §2º da Lei nº 9.430/1996, que trata da suspensão da incidência da multa de mora nos casos em que se tem a suspensão de exigibilidade por força de decisões judiciais.
Considerando que o referido dispositivo prevê a suspensão da multa moratória apenas nas hipóteses de suspensão de exigibilidade fundadas em decisão judicial, a RFB entende que a referida multa incide em caso de suspensão de exigibilidade decorrente de reclamação ou recurso administrativo.
Ora, embora o art. 63, §2º da Lei nº 9.430/1996 preveja, restritivamente, a suspensão da multa de mora apenas nos casos em que há decisão judicial, não se pode olvidar que o art. 151 do CTN determina que a suspensão da exigibilidade também ocorre em razão de recurso apresentado nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo, como é o caso da contestação do FAP.
O CTN, lembre-se, firmou-se, desde 1996, como a principal norma geral do Direito Tributário pátrio, sendo sua principal fonte normativa abaixo da Constituição. Mercê de sua relevância, ao disciplinar as relevantes matérias reservadas à competência do legislador complementar nos incisos do art. 146 da CR/88, foi por esta recepcionado (nos dispositivos com ela compatíveis) com estatura e força normativa própria de lei complementar,[1] de observância cogente pelos legisladores tributários nos âmbitos federal, estadual, distrital e municipal, bem como pelos respectivos agentes arrecadadores.
De forma inequívoca, o art. 151 do Digesto Tributário é autoaplicável, independentemente de sua reafirmação, reprodução ou ratificação em leis ordinárias da União, Estados e Municípios. O fato da Lei nº 9.430/1996 repetir apenas 2 das hipóteses previstas nos seis incisos do art. 151, não pode infirmar a eficácia e necessária prevalência de todos casos taxativa e cogentemente erigidas pela norma nacional.
Nesse rumo, reforce-se, o art. 141 do CTN tem previsão peremptória de que o crédito tributário, somente e necessariamente, tem sua exigibilidade suspensa estrita e rigorosamente nos casos previstos pelo próprio código, para além dos quais não pode haver suspensão, sob pena de responsabilidade funcional. Tratando-se a função arrecadatória de atividade plenamente vinculada à Lei, em especial ao CTN, deixar de suspender a exigibilidade em hipótese prevista pelo código também pode vir a ensejar responsabilidade funcional, em razão de descumprimento do art. 141, c/c art. 151, ambos do CTN, de forma omissiva.
Há de se considerar, ainda, que o art. 111 do CTN, determina a interpretação literal da legislação tributária que disponha sobre suspensão do crédito tributário, o que impede que qualquer das hipóteses do art. 151 sejam afastadas por lei ordinária da União ou, mesmo, por interpretação de seus agentes arrecadadores.
Nesse diapasão, na hipótese de suspensão de exigibilidade decorrente de recursos e reclamações administrativas que antecedem o próprio vencimento do tributo, a não incidência da multa moratória é decorrência lógica e jurídica, que independe de previsão legal específica em qualquer lei ordinária, porquanto este efeito deflui diretamente do CTN, sendo uma consequência da própria inexigibilidade do tributo e consequente inexistência de mora ou atraso imputável ao contribuinte. A par disso, qualquer lei ordinária em contrário não poderia afastar a previsão do CTN acerca da suspensão da exigibilidade, sob pena de ilegalidade e inconstitucionalidade, especialmente em virtude da previsão constitucional de que matérias relativas a crédito tributário são de regulação própria por Lei Complementar,[2] conforme consta no art. 146, III, b, da CR/88.
No caso da suspensão da exigibilidade fundada em decisões judiciais provisórias (liminares ou antecipações de tutela), revela-se conveniente a previsão legal específica determinando o afastamento da multa moratória porque as decisões provisórias, quando eventualmente cassadas, têm como regra a retroação dos efeitos da cassação e a recomposição do status quo ante – o que poderia ser invocado como fundamento para a exigência de multa moratória.[3]
Diante da suspensão da exigibilidade, decorrente de ato anterior ao término do prazo para recolhimento dos tributos, os valores controvertidos a título de RAT ajustado pelo FAP não se tornaram sequer exigíveis. Não há, portanto, atraso ou mora a serem imputados ao contribuinte antes de sua regular intimação da decisão final em sede administrativa e, portanto, não são devidos quaisquer valores a título de multa, moratória ou punitiva.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), acatando lógica indisputável, já manifestou entendimento neste sentido, reconhecendo que “as causas suspensivas de exigibilidade do crédito tributário, enumeradas no artigo 151, do Código Tributário Nacional, advindas antes do decurso do prazo para pagamento do tributo (sujeito a lançamento por homologação ou a lançamento de ofício direto), têm o condão de impedir a aplicação de multa ou juros moratórios, por não restar configurada a demora no recolhimento da exação pelo contribuinte, pressuposto dos aludidos encargos (a multa moratória pune o descumprimento da obrigação principal no vencimento; e os juros de mora constituem compensação pela falta de disponibilidade dos recursos pelo sujeito ativo pelo período correspondente ao atraso)” (REsp 774739/RJ, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 15/04/2008, DJe 14/05/2008).
Nesse contexto, apesar do entendimento divergente da RFB, o nosso entendimento é de que a contestação do FAP tem o condão de suspender a exigibilidade da integralidade dos valores que foram objeto de contestação pelo contribuinte, não sendo devida a multa moratória sobre os valores porventura não recolhidos (ou recolhidos a menor) pelos contribuintes em decorrência da aplicação de FAP inferior ao que lhe foi originalmente atribuído.
[1] Sobre o reconhecimento, pelo STF, de que trata-se o CTN de lei complementar rationae materiae, confira-se: RE 560626, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 12/06/2008, REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-232 DIVULG 04-12-2008 PUBLIC 05-12-2008 EMENT VOL-02344-05 PP-00868 RSJADV jan., 2009, p. 35-47; RE 559943, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 12/06/2008, REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-182 DIVULG 25-09-2008 PUBLIC 26-09-2008 EMENT VOL-02334-10 PP-02169 LEXSTF v. 30, n. 359, 2008, p. 321-366.
[2] Neste sentido, pertinente é a Súmula Vinculante nº 8 do STF e respectivos precedentes, por meio dos quais foi reconhecida a inconstitucionalidade de dispositivos de decreto-lei e de lei ordinária que tratavam de normas gerais de direito tributário (especificamente de prescrição e decadência de crédito tributário), em contradição ao que determina o CTN.
[3] Este, aliás, foi o entendimento que prevaleceu em relação à Contribuição sobre Movimentações Financeiras (CPMF), que contava com lei específica determinando que, em sendo revogadas eventuais liminares, os valores deveriam ser recolhidos com todos os encargos moratórios. Neste sentido, vide REsp 676.133/MG, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 06/12/2005, DJ 13/02/2006.
Paulo Roberto Coimbra Silva é professor de Direito Tributário e Financeiro da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pós-graduado em International Taxation pela Harvard Law School e pela Universidad de Santiago de Compostela, doutor e mestre em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Conjur, 11 de setembro de 2019