Por José Eduardo de Resende Chaves Júnior
Ingressamos na era da crowd economy, da gig economy, de tarefas repetitivas, executadas por milhões de trabalhadores arregimentados pelas plataformas eletrônicas de trabalho. Nessa nova economia, o trabalho torna-se temporário, precário, um bico. São microtarefas, com microrremunerações.
É a intensificação da redução da porosidade do trabalho, pelo aproveitamento de suas sobras, do tempo “morto” do trabalhador, que estaria destinado ao lazer, ao repouso, à reflexão ou mesmo à sua qualificação.
Já parece perceptível a progressiva substituição das empresas de intermediação de trabalho por plataformas virtuais, que conectam diretamente o tomador final com o prestador pessoal do serviço. Esse prestador de serviço é o detentor das ferramentas de trabalho, é obrigado a assumir os riscos e custos do negócio, mas não é o proprietário dos meios de produção digitais — que são o algoritmo e a estrutura de rede.
A produção econômica na modernidade industrial se destinava à confecção de mercadorias materiais, no sentido de transformar, linear e diretamente, o trabalho, material e subordinado, em mercadoria palpável e concreta.
Já a produção pós-material não se preocupa tanto com a confecção da mercadoria material, isso porque a automação e a inteligência artificial, a indústria 4.0, que liga a internet das coisas com o ambiente produtivo, possibilitaram aumentar, e de forma exponencial, a capacidade de reprodução de bens, o que, logicamente, fez diminuir o valor desses bens, materiais e reproduzíveis, no mercado.
Nesse sentido, na contemporaneidade, o trabalho mais estratégico — isto é, aquele que agrega mais valor à mercadoria ou ao serviço — passa a ser o trabalho que se destina a produzir não mais bens tangíveis, mas relações, nomeadamente, relações de conhecimento tecnocientífico, relações de ideias, relações de informação e comunicação e até relações afetivas.
O core da organização produtiva das gigantes da economia digital, tais como Google, Facebook, Amazon, Apple, Ali Baba, Uber, Didi Chuxing e outras tantas potências eletrônicas, torna-se cada vez mais evanescente. Capitalismo da emoção. As instâncias da produção e consumo imbricam-se, confundem-se.
Da economia da abundância
Os megadados passam a ser os recursos mais estratégicos para a produção. Para gerar valor, eles não podem ser escassos, como na economia tradicional. Os algoritmos de aprendizado de máquina só funcionam bem com uma base imensa de dados. A abundância passa ditar a nova ordem econômica do big data produtivo.
Da lei neoclássica dos rendimentos marginais decrescentes, a economia da abundância funda uma espécie de neomarginalismo, a partir do princípio dos rendimentos marginais sempre crescentes.
A dicotomia entre software e hardware, que caracterizou a passagem da era analógica dos átomos para era digital dos bits nos anos 1980, sintetizados na diferença dos modelos de negócio entre IBM e Microsoft, dissipa-se na ideia de netware.
As externalidades de rede passam a ser internalizadas na net economy. Não se distingue mais o trabalho amador do profissional. A categoria profissional perde sua potência negocial.
Categoria profissional
Categoria profissional é conceito clássico para designar o coletivo produtor das riquezas no sistema capitalista da grande indústria fordista. Nos termos do artigo 511 da CLT, o conceito de categoria gira em torno da ideia de homogeneidade e de “similitude de condições de vida oriunda da profissão ou trabalho em comum”.
Categoria profissional é um conceito construído a partir de uma noção de identidade, de uma identidade da profissão ou do trabalho em comum. Nunca foi um conceito ontológico, mas sobretudo sociológico, que encontrava sua identidade, não na organização espontânea, mas numa confluência de interesses econômicos, juridicamente regulados.
A identidade profissional, objetiva, tende a converter-se em diferenças amadoras, subjetivas. Autonomia coletiva desdobra-se em individualidades capturadas.
A desprofissionalização da categoria trabalhista é uma tônica das plataformas eletrônicas de trabalho, que passam a possibilitar a arregimentação da massa, desorganizada juridicamente, de trabalhadores.
A categoria nesse novo contexto produtivo é reduzida a ideia de massa. Amassada, disforme, desorganizada. Um engenheiro da zona sul e um motorista profissional da periferia passam a dirigir veículos para os mesmos potenciais passageiros.
Se já não é mais possível reconstruir a categoria, é preciso desmassificá-la. Urge converter o crowdwork em trabalho da multidão.
‘Multidão’ como conceito político
Nas plataformas de trabalho não há mais categoria profissional homogênea organizada, com similitude de condições de vida, identidade e conexidade, nos moldes do artigo 511 da CLT, mas apenas o crowdwork, ou seja, a massa heterodoxa e disforme.
O teórico Jean-Louis Weissberg já falava de “hipermediação” como característica básica da nova produção cognitiva, fundada na associação de três níveis: semiótico, pragmático e político. O produtor-autor coincide com o consumidor-receptor-leitor. Nesse espaço de produção tecnocultural não se elimina a figura do autor individual, mas o imbrica, sem dissipá-lo, ao coletivo.
Há um processo interativo entre a singularidade e um novo operador no mundo do trabalho que poderíamos denominar de “multidão”. A “multidão” é um conceito ambicioso. É a tentativa de se chegar à democracia absoluta, inclusive de formulá-la teoricamente.
O conceito contemporâneo de “multidão” parte das formulações do Maquiavel democrático dos Discorsi e de Espinosa. É especialmente interessante para nossa análise, pois está fundado em duas chaves: (i) nas novas formas de trabalho e (ii) na ideia de rede.
Sylvère Lotringer, no prefácio da edição norte-americana de A grammar of the multitude[1], revela que a origem do conceito “multidão” foi fruto da ‘”teoria autonomista”, formulada em vários lugares, mas que foi efetivamente desenvolvida na Itália dos anos 1960 até os 70[2].
Negri e Hardt, mais contemporaneamente, apresentam a “multidão” como contrapoder[3] ao “império”, que, por sua vez, não se confunde, no contexto ferramental desses autores, com o conceito de “imperialismo”.
Para Paolo Virno a dicotomia decisiva para a compreensão das características da esfera pública contemporânea é a operada entre os conceitos de “multidão” em contraposição ao de “povo”. Sustenta Virno que os pais putativos desses conceitos são, respectivamente, Espinosa e Hobbes.
Nesse sentido, “multidão”, na noção espinosiana, indica uma pluralidade que subsiste no espaço público, a partir da ação coletiva, mas sem dissolver-se numa unidade monolítica. Hobbes, mira de forma negativa a “multidão”, como um estado natural, caótico, antes de sua organização como “corpo político” e anterior ao Estado, mas que pode ressurgir em momentos de tumulto social. Segundo Hobbes, a “multidão” se opõe à obediência e a pactos duradouros, e que quando os cidadãos se rebelam contra o Estado se trata da investida da “multidão” contra o “povo”.
A ideia de “multidão” — multitudo — a partir da perspectiva da ciência política não surgiu propriamente com Espinosa, pois seu pensamento coincide com o pensamento protestante do século XVII, que, a seu turno, é tributário do pensamento renascentista, especialmente de Maquiavel. Em seu Discorsi — Discursos sobre la primera década de Tito Livio —, Maquiavel formula a democracia florentina a partir dos movimentos que buscam organizar a liberdade na República e ordenar o trabalho na cidade.
Para Negri (Il Potere Costituente), Maquiavel não é o teórico do Estado absolutista moderno, senão o pensador da ausência de todas as condições para uma democracia, ausência, vazio que faz surgir o desejo de um programa democrático, de um poder constituinte aberto e não ávido para se encerrar numa Constituição.
Retornando a Espinosa, para ele a multitudo é o sujeito político por excelência. Partindo da distinção entre poder (potestas), como capacidade (de ser afetado) de um governante e potência (potentia), como força ativa e tornada ato, expressada como a vontade de Deus, uma vontade que não se distingue e se confunde com o próprio Deus — pura imanência da própria essência divina —, Espinosa situa o império absoluto da democracia como resultado da potentia imanente da multitudo. Uma potência imanente que até mesmo define o Direito: “Hoc jus, quod multitudinis potentia definitur”.
A multidão trabalhadora e sua “presentação jurídica
A representação não se conecta com o conceito de “multidão”. Ao contrário, pressupõe uma separação, uma identidade “segmentada”, e não um “seguimento”, um continuum de singularidades imanentes, um fluxo da “multidão”.
A representação opõe o coletivo ao individual, a maioria às minorias, o público ao privado, o singular ao “comum”[4], enfim, representa por oposição e disjuntiva, antes que como alternativa. A representação enfatiza a concepção de hegemonia como domínio excludente, e marca a procura pelos universalismos autoritários e redutores, os máximos divisores universais, em lugar dos múltiplos comuns.
Em todas as formas clássicas de representação de Max Weber — “apropriada”, “livre” ou “vinculada” — não há mais potência, e não é mais, só uma questão de legitimação, mas, principalmente, de força, de redução efetiva de potência social dos muitos. “Potentia” que se reduz a “potestas”.
Em resumo, a “presentação” privilegia a “organização” antes que a representação. Aqui, “organização” entendida como formulada por Edgar Morin — “ordem-desordem-interação-organização” — ou seja uma organização complexa, uma nova ordem dos trabalhadores que não exclui o caos sindical, uma organização essencialmente relacional e de interação, na qual a máxima complexidade da desordem sindical conterá a ordem, e a extrema complexidade da ordem conterá a desordem, em sua profunda dialética[5].
Considerações finais
O conceito de categoria profissional homogênea, com similitude de condições de vida, prevista pelo artigo 511 da CLT não é a classe sujeitada ao capital tecnológico. É a multidão indivisa, codificada, controlada pelo bigdata produtivo e pelas tecnologias do algoritmo.
O Direito Coletivo do Trabalho desafia uma profunda reformulação conceitual do sindicalismo, que enfatize a solidariedade, com diversidade e liberdade total para organização.
No marco da “multidão” é mais operativo falar-se em “organização da presentação” do que da representação. Aqui, “organização” é entendida como “ordem-desordem-interação-organização”, isto é, como uma organização complexa, uma nova ordem dos trabalhadores que não exclui o caos sindical, como uma organização essencialmente relacional e de interação, na qual a máxima complexidade da desordem sindical conterá a ordem, e a extrema complexidade da ordem conterá a desordem.
O conceito de comum sobrepõe o de coletivo, como o de multidão o de categoria profissional. Mas é importante buscar as energias de emancipação que o conceito de multidão esponoseana implica, separando-o bem da ideia de massa, ou seja, distinguir, mass e crowd de multitude.
[1] Cfr. VIRNO, 2004.
[2] A “multidão”, tal como a encaramos neste texto, começou a se esboçar teoricamente em Espinosa — multitudo, embora desde o ponto de vista político não tenha surgido propriamente de Espinosa, já que o pensamento espinoseano coincide com o pensamento protestante do século XVII, que, por sua vez, é tributário do pensamento renascentista, especialmente de Maquiavel.
[3] Negri concebe “contrapoder” em três ordens: como (i) resistencia contra o velho poder; como (ii) insurreição de um novo poder e como (iii) potencia constituinte do novo poder (NEGRI, 20004(B), p. 157).
[4] A ideia de “comum” de Negri e Hardt, que não se identifica com a ideia de “público” nem de “coletivo”, nos parece conectada e esclarecida pela ideia de “lugar-comum” em Aristóteles, como anotado por Paolo Virno.
[5] A profunda dialética entre ordem e desordem, que é mais entrelaçada do que se imaginava, nos permite vislumbrar na nova noção de “organização” a possibilidade de encontrar caminhos para investigar a natureza das leis. Essa noção se situa no nível do próprio paradigma, no sentido kuhniano, pois é preciso deixar em suspenso o paradigma lógico no qual ordem e desordem se excluem MORIN (2002) p. 105.
José Eduardo de Resende Chaves Júnior é desembargador no TRT-3 (MG), doutor em Direitos Fundamentais e professor adjunto da PUC Minas.
Conjur, 18 de fevereiro de 2019