Uma discussão séria sobre a Previdência Social teria de incluir conceitos macroeconômicos.
Quando a direita fez uma dura ofensiva para que o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fizesse uma segunda “reforma” da Previdência Social, em 2006, o então ministro da Fazenda Guido Mantega disse ao jornal britânico Financial Times, que o governo estava unificando as receitas do Tesouro e da Previdência Social como forma de melhorar a gestão do sistema. Para ele, a Previdência já havia sido reformada e caminhava rumo à estabilidade.
Mantega explicou que os efeitos do aumento real do salário mínimo, que os neoliberais insistem em classificar como parte dos gastos correntes do Estado — ao lado de despesas com viagens, escritórios, computadores etc. —, seriam administráveis dentro do regime criado com a “reforma” anterior. Ele fez as contas: o aumento do mínimo custou R$ 5 bilhões; só o combate às fraudes, com a unificação da fiscalização, geraria um resultado que cobria esse valor.
Coisas diferentes
Esse raciocínio se choca com a pregação dogmática dos adoradores do “mercado-deus” que, desde o surgimento do mantra da “reforma”, propagam a teses de que a Previdência deve ser encarada como uma poupança que se acumula durante décadas para ser usufruída nos anos finais da vida do trabalhador. Para eles, o valor das contribuições definirá o benefício no futuro. E, de propósito, estabelecem uma enorme confusão entre Previdência e assistência social. Nas contas brasileiras, elas aparecem misturadas, juntamente com a saúde, nos gastos da Seguridade Social.
Mas é importante reconhecer que são coisas diferentes. Assistência social é o que se gasta, em geral com os mais pobres, em programas de distribuição de produtos, serviços ou dinheiro, sem nenhum tipo de exigência financeira por parte dos beneficiários. É o caso, por exemplo, da distribuição de cestas básicas. Em um país pobre como o Brasil, programas desse tipo são importantes e bem-vindos. Mas é preciso não confundi-los com outros tipos de gastos. A Previdência não é o mesmo que assistência, e seus objetivos são diferentes. O conceito clássico de Previdência têm efeito redistributivo.
Não faz sentido, sob nenhum aspecto, a tese neoliberal de que a Previdência é como um Titanic, o coração do déficit público. Essa ideia nasceu como mantra na “era neoliberal” dos anos 1990. ”A grande fragilidade do Plano Real foi a ausência de um ajuste fiscal profundo desde o início”, disse á época o economista Edmar Bacha, então associado ao banco BBA e um dos integrantes do grupo que se reuniu, sob o comando do então presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), André Lara Resende, para estudar o “problema” da Previdência.
Era uma imposição do acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). ”Se o governo não conseguir resultados profundos nesse campo, só há duas soluções possíveis: calote na dívida ou volta da inflação, que, aliás, é um tipo de calote”, disse Bacha. Para ele, trata-se de um jogo de matar ou morrer. A questão é saber quem mata e quem morre. Para se entender essa ideia neoliberal é importante considerar a abordagem do “problema” um primeiro aspecto a ser considerado é conceitual.
Os vagabundos de FHC
O que é uma contribuição previdenciária? É um seguro que as pessoas pagam ao longo da vida pelo ”risco” de sobreviverem após seu período no mercado de trabalho. O benefício deveria ser calculado levando-se em conta o desenvolvimento econômico do país e o volume de renda gerado durante o período em que o trabalhador esteve na ativa. É um conceito social. Mas, para o pensamento neoliberal, a contribuição previdenciária deve ser um conceito de ”mercado”, como se o trabalhador fosse um acionista de uma empresa.
O sistema previdenciário brasileiro foi montado de forma que contribuições acumuladas e aposentadorias a serem pagas não tivessem nada que ver umas com as outras. A partir de uma certa idade, todos têm direito de receber aposentadoria, a despeito de quanto foi pago ao sistema. O maior exemplo de justiça social deste modelo é a ausência de uma idade mínima na hora da aposentadoria. Valia o tempo de serviço. Até a década de 1950, só podia se aposentar quem completasse 50 anos. Em 1960, a data-limite subiu para 55 anos. Em 1962, o limite de idade caiu. Prevaleceu, desde então, um outro tipo de cálculo: a aposentadoria por tempo de serviço.
Para os neoliberais, isso gerou uma quantidade enorme de aposentadorias “precoces” no país e motivou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) a chamar de vagabundo quem se aposentava por esse sistema. Não havia nada de “precoce” nisso. Imagine o exemplo de alguém que começou a trabalhar aos 15 anos. Aos 50, poderia se aposentar. Já alguém que começasse a trabalhar mais tarde, consequentemente se aposentaria mais tarde. Num país de baixos salários e farta força de trabalho, onde há “precocidade”, injustiça ou “vagabundagem” nisso?
Vermelho, 29 de janeiro de 2019