A pandemia de Covid-19 impôs ao mundo dilemas relacionados à saúde pública, ao planejamento político, econômico e social. Para lidar com o novo cenário, considerado por alguns o marco de início do século 21[1], diversos campos da ciência se mobilizam para impedir o contágio em massa. No Brasil, é louvável o esforço para evitar a sobrecarga do Sistema de Único de Saúde e manter as cidades abastecidas.
Essa coluna volta-se à análise do Projeto de Lei nº 1.179/2020 (PL), proposto pelo senador Antonio Anastasia (PSDB/MG), aprovado pelo Senado Federal e em trâmite na Câmara dos Deputados. O projeto resulta da contribuição de uma comissão de juristas, coordenada pelos ministros Dias Toffoli e Antonio Carlos Ferreira e pelo professor Otavio Luiz Rodrigues Junior, reunindo membros da comunidade jurídica para desenhar um Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado.
A situação estabelecida pela pandemia é atípica e transitória, embora ainda não seja possível estabelecer quando findará. Porém, muitas mudanças impostas pela Covid-19 alteram significativamente o modo de vida das pessoas e acabam acelerando processos que já estavam em curso. O exemplo mais evidente é o desenvolvimento tecnológico, que versatilizou ainda mais as formas de comunicação entre as pessoas, intensificou a contratação pela internet, assim como o ensino e o trabalho remotos (homeoffice).
Nesse contexto, merecem destaque os arts. 4º e 5º do PL, os quais impõem às pessoas jurídicas de direito privado elencadas no art. 44 do Código Civil (CC) a observância das restrições à realização de reuniões e assembleias presenciais, indicando que elas poderão se realizar por meios eletrônicos.[2]
Todas as pessoas jurídicas inicialmente alcançadas pela norma têm como marco constitutivo contrato ou estatuto social que materializam o contrato plurilateral. Na lição de Tullio Ascarelli, esses são contratos de organização, os quais podem estruturar a atividade desenvolvida na forma de uma sociedade ou na forma de associação[3], as quais têm em seu centro a formação de um fundo próprio e sua afetação à realização de uma finalidade comum e, para juntar essas duas pontas, devem enunciar a forma de administração. As partes que constituem e administram essas entidades formam uma rede relacional, que envolve um sinalagma difuso, na qual são mantidos direitos e obrigações entre pares, mas também entre eles e a nova entidade. Essa estrutura relacional encerra em si uma tensão latente entre os interesses individuais dos membros, equilibrados pela prevalência do interesse comum, que possibilita a decisão por maioria. Uma vez rompido esse equilíbrio, prejudicada estará o funcionamento da pessoa jurídica.
As reuniões e assembleias gerais são, portanto, o locus natural de manifestação da vontade social, o meio onde se encontram e se debatem os rumos da pessoa jurídica, sua forma de atuação e investimento. Por isso, elas devem ser consideradas o órgão deliberativo essencial dessas instituições, onde se forma a “resultante” das vontades individuais.[4] É nelas que se apura a formação da maioria, sendo imprescindível a fixação de regras e quoruns para deliberação, mas é também o cenário ideal para a democratização das decisões, fazendo-se preservar e proteger os interesses dos minoritários.
As matérias discutidas em assembleia variam muito conforme perfil e características da respectiva entidade, o que poderia suscitar dúvidas sobre a necessidade de uma regra geral de autorização para a realização de forma virtual, aplicável a todas as pessoas jurídicas previstas no art. 44 do Código Civil. A alteração do projeto em razão do acolhimento das Emendas n. 13, 26, 44 e 53 restringiu a aplicação dos dispositivos às associações, sociedades e fundações.
Se por um lado a restrição à realização das reuniões e assembleias, imprescindível no momento atual por uma questão de saúde pública, representa uma limitação na forma de deliberação interna, a ampliação de sua realização por meios eletrônicos acentua um processo de informatização que tem sido utilizado por algumas delas e paulatinamente reconhecido pelo Direito.
Exemplos interessantes podem ser colhidos na experiência internacional. A mais desenvolvida é a do estado norte americano de Delaware, que faculta à administração realização de assembleias virtuais (The Virtual Shareholders Meeting – VGM) desde 2000, na Delaware General Corporation Law[5]. Até 2010, 23 estados norte americanos já haviam desenvolvido legislação sobre a matéria[6]. Do outro lado do Atlântico, a Diretiva 2007/36/CE da União Europeia sugere o afastamento de obstáculos legais para a participação e votação virtual de sócios na assembleia[7], bem como indica que os estados membros permitam a realização de assembleias virtuais[8].
No Brasil, a Lei n. 12.431/2011 operou as modificações na Lei n. 6.404/1976 para possibilitar que sócios de sociedades anônimas abertas participem e votem em suas assembleias gerais, e acarretou mudanças na instrução n. 481/2009 da Comissão de Valores Mobiliários, cujo art. 31 já regulamentava a apresentação de procuração eletrônica por sócio detentor de, pelo menos, 0,5% do capital social. A realização da assembleia geral de credores prevista no art. 35 da Lei n. 11.101/2005 na forma virtual pode ser considerada uma realidade, inclusive com plataformas especializadas na prestação do serviço[9]. Todavia, a nova realidade imposta pela Covid-19 reforça essa alternativa, conforme já noticiado por este veículo[10].
Contudo, a disciplina da assembleia de credores não foi objeto do PL, tampouco a participação e votação virtual na assembleia geral de uma sociedade anônima são suficientes para configurar uma assembleia virtual. Como explica o professor Fábio Ulhoa Coelho[11], uma assembleia virtual exige que a assinatura do livro de presença, a declaração de abertura dos trabalhos, a pontuação do início e fim da discussão de cada item da ordem do dia, a determinação do início e fim da votação de cada item da ordem do dia, o exercício do direito à voz e de voto por todos os acionistas presentes, a declaração de encerramento dos trabalhos, a assinatura do livro de atas e a expedição da certidão sejam praticados por meio eletrônico. Além disso, as declarações de todos os participantes teriam que ser certificadas pelo sistema ICP-Brasil.
A maior dificuldade para a realização de uma assembleia geral genuinamente virtual, segundo o autor, seria a impossibilidade de se autenticarem os livros de presença de acionistas e de atas, bem como de se arquivar a certidão do livro de atas em meio eletrônico nas Juntas Comerciais[12], embora algumas já o tenham viabilizado [13].
O formato virtual reduz custos para a sociedade e os sócios, que não precisam despender recursos com deslocamento e estadia. A economia de dinheiro, e também de tempo, favorece a participação de sócios minoritários e daqueles que vivem em outras localidades.
Ademais, a discussão pode ocorrer de forma mais organizada, pois os sócios têm melhor acesso às informações relevantes e podem escolher o melhor momento para participar, porque o formato virtual admite que a assembleia dure por alguns dias e não exige participação simultânea. O resultado é a facilitação da participação, sobretudo em grandes companhias cujo capital é pulverizado.
Por outro lado, a discussão e decisão virtual de matérias importantes estarão sujeitas ao vazamento, devido à possíveis falhas na segurança da plataforma utilizada, ou mesmo ciberataques. Vale frisar, nesse contexto, que a Lei n. 12.965/2014 responsabiliza os provedores de aplicação pelo sigilo da comunicação dos usuários.
- efeito, a conveniência desse modelo após a pandemia dependerá de muitas variáveis. As sociedades anônimas de capital aberto, em razão de seu dever de publicidade, estarão menos vulneráveis aos danos decorrentes de vazamentos. Além disso, empresas com esse perfil confiam boa parte das decisões estratégicas a núcleos mais restritos, como o conselho de administração. Não por acaso, os exemplos de entidades que já adotam o modelo virtual de assembleia têm esse perfil comum: todas são grandes companhias de capital aberto e pulverizado. Não obstante, a legislação temporária estende essa experiência a outras entidades que podem modificar permanentemente seu modo de funcionamento. Tudo dependerá da conveniência e da adaptabilidade de cada um.
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Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
[1] ALMEIDA, Rogério de. Covid-19, o nascimento de um novo século e os laboratórios sociais. Jornal da USP. São Paulo, 15 abr. 2020. Disponível em:https://jornal.usp.br/artigos/covid-19-o-nascimento-de-um-novo-seculo-e-os-laboratorios-sociais/. Acesso em 16 abr. 2020
[2] Senado Federal. Projeto de Lei n. 1179/2020. “Art. 4º As pessoas jurídicas de direito privado, referidas nos incisos I a IV do art. 44 do Código Civil, deverão observar as restrições à realização de reuniões e assembleias presenciais durante a vigência desta Lei, observadas as determinações sanitárias das autoridades locais. Art. 5º A assembleia geral, inclusive para os fins do art. 59 do Código Civil, poderá ser realizada por meios eletrônicos. Parágrafo único. A manifestação de participantes poderá ocorrer por qualquer meio eletrônico indicado pelo administrador e produzirá todos os efeitos legais de uma assinatura presencial.”
[3] ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. Campinas: Bookseller, 1999, p. 425.
[4] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. 1, 19 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 186.
[5] ROBERT, Bruno. Exercício do direito de voto nas assembleias das companhias brasileiras, pedidos públicos de procuração, voto e participação à distância (Tese de Doutorado). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014, p. 438-441.
[6]. Alguns desses estados são: Arizona, Califórnia, Colorado, Flórida, Havaí, Kansas, Kentucky, Maryland, Michigan, Minessotta, Missouri, Dakota do Norte, Ohio, Oklahoma, Pensilvânia, Rhode Island, Tennessee, Texas, Utah e Vermont. (BOTTOSELLI, Ettore. Assembleia Geral Eletrônica. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. vol. 75. ano 20., jan.-mar. 2017, p. 161-184, p. 168.)
[7] Cf. item 9 da Diretiva 2007/36/CE. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32007L0036&from=EN. Acesso em: 17 abr. 2020.
[8] Cf. Art. 8º da Diretiva 2007/36/CE. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32007L0036&from=EN. Acesso em: 17 abr. 2020.
[9] http://www.brasilexpert.com.br/assembleia-geral-de-credores-virtual. Acesso em: 17 abr. 2020.
[10] VIAPINANA, Tábata. Por causa da Covid-19, assembleia de credores da Odebrecht será virtual. Revista Eletrônica Conjur. São Paulo, 24 mar. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-24/covid-19-assembleia-credores-odebrecht-virtual. Acesso em 04 abr. 2020.
[11] ULHOA COELHO, Fábio. Assembeias gerais de sociedade anônima em meio eletrônico. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito da PUC-SP, p. 4.
[12] ULHOA COELHO, Fábio. Assembleias gerais…cit, p. 8.
[13] BOTTOSELLI, Ettore. Assembleia Geral…cit., p. 179.