OPINIÃO
Maria Quitéria. Maria Filipa. Carlota Pereira Queiroz. Maria da Penha. O que essas mulheres têm em comum? Todas, a seu modo e em seu tempo, lutaram por liberdade e igualdade para as mulheres brasileiras. Quitéria e Filipa, heroínas da independência do Brasil, muitas vezes são esquecidas pela historiografia oficial. Carlota Pereira Queiroz, a primeira deputada brasileira, teve que enfrentar o machismo dos anos de 1930 no Poder Legislativo. Foi Maria da Penha que lutou para que o marido, seu agressor por 23 anos, fosse condenado por tentativa de assassinato. Em 2006, uma lei com seu nome foi criada e é um dos mais importantes instrumentos legais para coibir e punir quem comete violência doméstica contra a mulher.
Neste 8 de março, precisamos refletir sobre as lutas das feministas nasociedade brasileira. O Dia Internacional da Mulher celebra as mães, avós, tias e irmãs que vieram antes de nós e que nos deram marcos legais na defesa dos nossos direitos. Podemos destacar alguns deles, como o direito ao voto (1932); o Estatuto da Mulher Casada (1962), que liberou a mulher para trabalhar sem a autorização do marido; a Lei do Divórcio (1977); a Lei Maria da Penha (2006); a alteração do Código Penal para que atos libidinosos e atentados violentos ao pudor se configurassem como crimes de estupro(2009); as novas diretrizes para o atendimento às vítimas de violência sexual pelos agentes de segurança pública e pelo SUS (2013); a Lei do Feminicídio (2015), que torna hediondo o crime praticado em razão do gênero; e a Lei 13.718 (2018), que introduziu diversas modificações na seara dos crimes contra a dignidade sexual. Isso sem falar das significantes mudanças a partir da Constituição, do novo Código Civil (2002) e das decisões do STF em relação à agenda LGBTQIA.
A atualização das leis e das normas é o reconhecimento das desigualdades e assimetrias nas relações entre homens e mulheres na sociedade brasileira, sejam elas interpessoais ou institucionais. Mas será que esse reconhecimento é suficiente para produzir resultados na realidade fática promovendo um tratamento mais isonômico e equalizando as relações de poder entre os gêneros?
As estatísticas mostram que estamos muito distantes da agenda dos direitos das mulheres para o século XXI. O Brasil tem números alarmantes em relação à violência de gênero. Uma pesquisa do Datafolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entrevistou 2.084 pessoas entre os dias 4 e 5 de fevereiro e constatou que, no ano passado, 16 milhões de mulheres sofreram algum tipo de violência. São 1.830 mulheres agredidas por hora. 76,4% dessas agressões foram praticadas por maridos, ex-namorados ou vizinhos. E 42% dessas agressões aconteceram dentro de casa. Mas esses números devem ser ainda maiores, uma vez que 52% das mulheres não denunciam a violência.
Os dados de violência de gênero são abundantes e indicam que a cultura do brasileiro mudou pouco nesse quesito. E o Estado não consegue garantir a proteção das mulheres, mesmo com as atualizações normativas. Por exemplo, apesar de prevista na Lei Maria da Penha, as casas-abrigos para mulheres e seus filhos — menores em situação de violência doméstica e familiar — não existem ou não atendem à demanda na maioria dos municípios. Com isso, muitas vítimas de violência terminam voltando para casa onde está o seu agressor. Nem as delegacias especializadas em atendimento da mulher (Deam), um marco importante dentro da política brasileira, chegaram ao seu pleno funcionamento e atendimento. Desde a primeira unidade, criada em 1985, até fevereiro deste ano, apenas 21 Deams funcionavam 24 horas por dia no Brasil, segundo o levantamento da Gênero e Número.
As mudanças legislativas e normativas não são suficientes para transformar positivamente a sociedade. A discriminação e o preconceito contra mulher ainda existem e vão continuar a existir até que a cultura e os valores sociais sejam transformados. O fetiche causado pela força do Direito construiu na sociedade brasileira a ideia de que a normatização pode resolver qualquer problema. Entretanto, a desigualdade nas relações entre homens e mulheres é estrutural na sociedade e passa por questões culturais, educacionais e econômicas, que podem ser observadas nas relações familiares, no trabalho e nas ruas cotidianamente. Mais do que mudar o Direito, é preciso transformar a cultura e os valores de cada indivíduo, sejam homens ou mulheres.
O pensamento feminista precisa povoar também outros sistemas sociais, cujos códigos ainda são dominados pelo machismo. Nesse contexto, o feminismo assume um papel decisivo ao questionar as estruturas da sociedade contemporânea baseada na desigualdade e exclusão na medida em que foi construída sob a premissa de que parte de seus atores seriam superiores aos demais. E os movimentos da sociedade civil são de extrema importância para impulsionar as transformações e ao mesmo tempo pressionar por políticas públicas que promovam a inclusão efetiva de todas e todos.
É preciso também que nós, mulheres, estejamos unidas para juntas exercermos os nossos direitos e conquistarmos de fato igualdade. Para tanto, é necessário compreender que não existe apenas uma luta. Precisamos reconhecer que não somos uma categoria universal. Somos várias mulheres, com lutas distintas, e que algumas enfrentam violências maiores, tais como de raça e de classe. Se para a mulher branca é difícil romper com o machismo e o sexismo, para a mulher negra a situação é ainda pior, porque precisa enfrentar também o racismo.
Nós, mulheres advogadas, temos um papel importante na luta contra a violência de gênero e na construção do empoderamento feminino. Através da OAB, da universidade e de grupos de mulheres da sociedade civil, devemos participar da construção de políticas públicas e de leis para garantia e efetivação de direitos.
Ao mesmo tempo precisamos nos debruçar sobre os problemas inerentes à mulher advogada. E não são poucos. Embora sejamos quase metade dos profissionais cadastrados na Ordem, as advogadas ainda enfrentam enormes dificuldades no exercício da profissão. A primeira delas é a diferença salarial entre homens e mulheres. Não é aceitável que ganhemos menos por nossas atividades.
Outro problema, talvez o maior deles, é o assédio sexual no ambiente de trabalho. Advogadas e estagiárias enfrentam assédio nos fóruns, nas repartições, nas delegacias, nos presídios e, sobretudo, nos escritórios de advocacia. Infelizmente, ainda são poucas as mulheres que denunciam o abuso, por vergonha e por medo de prejudicarem suas carreiras.
A diferença entre homens e mulheres não pode ser uma justificativa para a desigualdade. As restrições de espaços de poder simbolicamente construídas com base nessa diferença precisam ser superadas pela via de ações políticas que extrapolam a simples mudança da legislação. Enfrentar a desigualdade de gênero é entender como a cultura molda as identidades e demarca o exercício de poder dentro da sociedade, para além do Direito.
Precisamos continuar lutando por igualdade — em todas as esferas da vida pública e privada — para que nunca mais nenhum ser humano seja submetido ou subjugado por seu gênero, classe, raça ou sexualidade.
Daniela Borges é advogada, professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Faculdade Baiana de Direito, presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada do Conselho Federal da OAB e conselheira federal pela OAB-BA.