A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) chega aos 70 anos no próximo dia 1º de maio com o desafio da formalização. Mesmo com a carteira de trabalho obrigatória desde 1932, 20% de toda a mão de obra do país ainda não têm carteira assinada, o que representa 18,6 milhões de admitidos ilegalmente e que, portanto, não são atingidos pelos direitos da lei. E há ainda 15,2 milhões de trabalhadores por conta própria sem qualquer proteção, por não contribuírem para a Previdência Social. O mercado de trabalho e a legislação do país são o tema da série de reportagens que O GLOBO inicia hoje.
Nascida em 1943, na ditadura do Estado Novo, sob o domínio do presidente Getúlio Vargas, a CLT reuniu a legislação existente na época. Segundo o professor de História Econômica da UFRJ Fábio de Sá Earp, Getúlio busca o apoio dos trabalhadores num momento de exceção. O Brasil começa a mudar de economia agrária para industrial, de rural para urbana. Era necessário regular o trabalho urbano. As leis reunidas nasceram antes, nos anos 30 e início de 40, como salário mínimo e exigência de carteira. Mas a CLT trouxe um capítulo novo inteiro sobre remuneração, alteração, suspensão e interrupção do contrato de trabalho. Arnaldo Süssekind, um dos integrantes da comissão que montou a CLT, disse em livro escrito em 2004 que a CLT cumprira “importante missão educativa, a par de ter gerado o clima propício à industrialização do país, sem conflitos trabalhistas violentos”.Nascida com 922 artigos, número que se mantêm até hoje, o conjunto de leis é objeto de caloroso debate entre economistas e juristas: menos regulação aumentará ou não a formalidade no mercado de trabalho? E os 70 anos da CLT chegam quando o mercado de trabalho passa por um dos melhores momentos. A taxa de desemprego nunca esteve tão baixa, em 5,5% em 2012, os salários continuam subindo mesmo com a inflação crescente e os empresários reclamam de falta de mão de obra. A quantidade de normas — são mais de 1.700 regras, entre leis, portarias, normas e súmulas trabalhistas vigentes no país — também é alvo de críticas e defesas.
Capacidade de formalizar: sem consenso
Setenta anos depois, não há consenso entre especialistas se menos regulação impulsionaria o emprego formal. Ex-ministro do Trabalho de Fernando Henrique Cardoso entre 1998 e 1999 e hoje economista da Gávea Investimentos, Edward Amadeo diz que boa parte da informalidade vem do custo e da complexidade da legislação. Na sua gestão, foram instituídos o contrato temporário e banco de horas.
— Evidentemente há uma enormidade de pequenas empresas que não têm condições de arcar com o custo ou a complexidade da legislação. O Simples foi uma das coisas que mais diminuiu a informalidade, ao facilitar o pagamento de impostos, e o mesmo ocorreria com a reforma trabalhista.
O sociólogo Adalberto Cardoso, professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj, especializado em relações de trabalho, afirma que a informalidade existe por não haver emprego formal para todos. Como o seguro-desemprego ainda é limitado no Brasil (pago por até cinco meses), o trabalhador recorre a atividades informais para sobreviver.
— Não tem emprego formal para todo mundo. Pequenas empresas que têm funcionários não produzem riqueza suficiente para o pagamento de impostos, e não só os trabalhistas. Não têm condições econômicas para fazer frente ao mundo da formalidade. O mercado de trabalho brasileiro é o mais flexível do mundo, o empregador pode alocar a mão de obra como quiser.
Com ou sem reforma, a CLT afinal foi ou não boa para o mercado de trabalho? Estudioso de relações sindicais e de trabalho, João Guilherme Vargas Neto, também consultor da Força Sindical, é taxativo:
— A CLT é a vértebra da estrutura social, política e econômica do Brasil. Sem a CLT, a sociedade teria se dissolvido.
Para o economista Lauro Ramos, do Ipea, a CLT é anacrônica e, no afã de garantir direitos, acabou criando barreiras:
— Em nenhum país do mundo tem carteira de trabalho, símbolo do legal e do ilegal. De quem cumpre ou não a lei.
Mesmo sem reforma ampla, a CLT vem sendo mudada a conta-gotas nas últimas décadas. O conjunto de artigos já sofreu 497 modificações desde 1943, além das 67 disposições constitucionais de 1988 que se somaram à CLT. Desde a Constituição de 88 já foram propostas 255 ações no Supremo Tribunal Federal questionando a constitucionalidade de regras trabalhistas, conforme levantamento do Grupo de Pesquisa Configurações Institucionais e Relações de Trabalho da UFRJ.
— A CLT foi alterada muitas vezes, a conta-gotas. Tem muitos artigos, alguns discutíveis, outros que acredito que já foram revogados. É preciso uma limpeza, uma grande revisão. Isso é urgente e relevante para acabar com as dúvidas — afirma Sergio Pinto Martins, professor de Direito da USP e desembargador do TRT/SP.
O detalhamento da CLT também é motivo de debate. São 922 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho, 295 súmulas e 119 orientações (precedentes normativos) do Tribunal Superior do Trabalho, 193 artigos do Código Civil, 145 súmulas do Supremo Tribunal Federal e 67 dispositivos constitucionais, de acordo com o sociólogo José Pastore. Há quem considere que o Brasil é um dos países com mais normas trabalhistas do mundo, enquanto outros argumentam que nações como França e Portugal têm legislações trabalhistas tão ou mais detalhistas que a nossa e que a sociedade hoje é complexa e exige tal detalhamento.
‘No topo da lista de países com mais normas’
O professor da Faculdade de Economia e Administração da USP Hélio Zylberstajn diz que o Brasil está “no topo da lista dos países com mais normas”. “É uma quantidade absurda”. Já Ângela Castro Gomes, professora da UFF e coordenadora do CPDOC da FGV, lembra que todo o direito brasileiro é detalhista.
Com três carteiras de trabalho (1959, 1975 e 1985), o aposentado Antônio Sousa, de 73 anos, teve a carteira assinada em 1959 como servente.
— A pessoa tinha que trabalhar dez, 14 horas. Já virei inúmeras noites trabalhando. E férias não existiam. Só em 1963 que isso começou, mas eram 20 dias. Se hoje o filho do operário estuda na universidade é porque o emprego do pai dá garantia.
Com Lula e Dilma, reforma é engavetada
O melhor momento do mercado de trabalho nas últimas décadas tirou do foco a discussão sobre a necessidade de reformar a CLT. Com o emprego crescendo — a ponto de termos a menor taxa de desemprego dos últimos dez anos, 5,5% na média de 2012 em seis regiões metropolitanas e que continua em queda este ano — o tema perdeu lugar na agenda econômica para a discussão sobre logística e infraestrutura do país, segundo especialistas.
A troca de governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), quando foram instituídas formas mais flexíveis de contratação, como contrato temporário, e de jornada, com a adoção de banco de horas, para o do petista Luiz Inácio Lula da Silva, também fez mudar a importância do tema.
— O que tinha de acontecer de reforma trabalhista já aconteceu. O Brasil crescendo com formalização e outra ideologia mudaram o debate — afirma o sociólogo Adalberto Cardoso.
No início de seu governo, em 2003, Lula promoveu um fórum nacional para debater a reforma trabalhista, uma promessa de campanha que foi reiterada quando já estava na Presidência. As discussões começaram pela reforma sindical, mas o assunto morreu na praia. A falta de consenso era tanta que nem chegou a se transformar numa proposta de mudança, diz Cardoso. E a promessa de campanha ficou para trás, nos dez anos do PT no poder.
No governo de Dilma Rousseff, essa hipótese ficou enterrada de vez. Sindicalistas presentes a reunião com a presidente disseram que ela foi enfática ao negar qualquer reforma. Segundo eles, Dilma declarou em março de 2012:
— No meu governo não vai ter reforma trabalhista. Nenhum ministro está autorizado a falar sobre isso ou propor qualquer coisa nesse sentido.
Segundo o professor da Unicamp Claudio Dedecca, o tema está fora da agenda política. Para Edward Amadeo, a forte geração de emprego nos últimos anos fez a reforma perder apelo. Ele alerta que a reforma não é só para criar emprego, mas também produtividade.
— O maior problema do Brasil hoje é o baixo crescimento da produtividade. Se tivéssemos feito a reforma há dez anos, a situação seria diferente — diz.
FONTE: O Globo, 29 de abril de 2013