Cresce o risco de uma nova crise mundial

4 de dezembro de 2018

FMI, OCDE E OMC alertam sobre a convergência de problemas na economia global. Para piorar, o sistema financeiro continua a agir como em 2008.

Por Carlos Drummond, da CartaCapital

 

 

 

Agora é oficial: uma nova crise mundial, cogitada com frequência crescente nos últimos meses, é possibilidade concreta, reconhece a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico no seu relatório periódico mais importante, o Economic Outlook, de acompanhamento da situação e perspectivas da economia global, divulgado na quarta-feira 21.

Para a OCDE, “nuvens acumulam-se no horizonte” e a combinação de elevações de tarifas, preço do petróleo e juros pode “abalar seriamente o crescimento”. Alertas semelhantes foram emitidos por entidades como a Organização Mundial do Comércio e o Fundo Monetário Internacional.

Ninguém se arrisca a prever quando nem como o colapso ocorreria, mas parece não existir dúvida quanto a essa perspectiva diante da piora da economia global enfraquecida desde 2008 e golpeada pelo conflito comercial e o protecionismo em expansão.

A ampliação das incertezas contribuiu para aumentar a remessa de divisas ao exterior e o dólar voltou a subir, fechando em 3,91 reais na terça-feira 27, e o Banco Central vendeu lotes da moeda estadunidense no mercado na tentativa de conter a valorização.

Segundo a OCDE, o Brasil será o terceiro país a sofrer o maior impacto negativo depois de China e Estados Unidos, as duas superpotências polarizadoras da guerra comercial mundial. Em simulação que incluiu países avançados e emergentes, a organização projeta uma queda de -0,83% no Produto Interno Bruto do Brasil, de -0,84% no PIB dos Estados Unidos e de -1,18% no PIB da China entre 2019 e 2020.

As estimativas têm por base a hipótese de aumento de 20 dólares por barril nos preços do petróleo, elevação de 1 ponto percentual nos prêmios de risco de investimento nas economias emergentes e tarifa de 25% sobre o comércio bilateral EUA-China a partir de 2019.

O cálculo supõe que todos os choques durem cinco anos e considera o efeito nos PIBs a preços constantes, isto é, descontada a inflação projetada.

OCDE, OMC e FMI reiteram sua confiança no crescimento, alertam quanto aos riscos da conjuntura atual, mas não avançam análises a respeito das causas do problema. Na origem da nova ameaça, concordam vários economistas e profissionais do mercado, está o mau funcionamento do sistema financeiro mundial que, apesar de protagonizar o desencadeamento do colapso de 2008, conservou o poder conquistado sob o neoliberalismo e continuou a funcionar e a crescer sem restrições relevantes, apesar de novas normas de regulamentação.

O seu crescimento exagerado fica claro no exemplo dos Estados Unidos, onde as instituições financeiras representam só 7% do PIB e apenas 4% do total de empregos, mas respondem por 25% do lucro empresarial total.

Com poder absoluto, o sistema financeiro reduziu os empréstimos à atividade econômica e aumentou ganhos ao girar cada vez mais em função da sua lógica e dos seus interesses e atraiu parcelas crescentes do interesse privado para a sua órbita.

Um exemplo é a Apple, com valor de mercado de 1 trilhão de dólares no terceiro trimestre e que hoje age também como banco de investimento, destinando grande parte do caixa para comprar títulos emitidos por outras empresas, a ponto de ser denominada pela agência Bloomberg de “a nova Pimco”, uma das principais gestoras de investimentos em renda fixa no mundo.

A formação de carteiras de títulos significativas por esta e muitas outras empresas produtivas escapa à esfera de regulação das instituições financeiras e já preocupa o Office of Financial Research, órgão criado no Departamento do Tesouro após 2008 para monitorar a estabilidade do mercado.

O conflito comercial fragilizou a recuperação dos EUA, que estava longe de ser brilhante, devido, entre outras causas, a uma recomposição claudicante da remuneração do trabalho, portanto do mercado consumidor.

Segundo o Departamento do Trabalho, seis das dez principais categorias de emprego que mais crescem pagam 15 dólares por hora e a participação da força de trabalho (porcentagem da população a partir dos 16 anos de idade que está trabalhando ou buscando ativamente o trabalho) é tão baixa quanto a do final dos anos 1970.

Tal situação não exclusiva da maior economia do mundo é uma das causas de a recuperação pós-crise de 2008 ser a mais lenta desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

A caracterização no relatório da OCDE de um contexto mundial complicado foi reforçada com o anúncio pela OMC, na segunda-feira 26, da possível desaceleração das transações internacionais até o fim do ano, segundo o indicador World Trade Outlook, de 100,3 para 98,6, o ponto mais baixo desde outubro de 2016, em consequência da estagnação do volume do comércio de mercadorias e do declínio das ordens de exportação, do transporte aéreo de cargas, da movimentação de contêineres nos portos, da produção e das vendas de automóveis, componentes eletrônicos e matérias-primas agrícolas.

O comunicado da OMC foi antecedido por uma série de avisos contidos em documento redigido pelo Fundo Monetário Internacional para a próxima reunião do G-20, grupo formado pelos ministros de Finanças e presidentes de bancos centrais das 19 maiores economias mais a União Europeia, de 30 de novembro a 1º de dezembro em Buenos Aires.

“As perspectivas para o crescimento a médio prazo são fracas. O crescimento da produtividade continua lento em vários países, reflexo em parte do investimento fraco após a crise. A oferta de mão de obra e a produtividade diminuíram especialmente nos países avançados. Os desequilíbrios globais persistem e as vulnerabilidades financeiras aumentaram. Os desequilíbrios externos estão praticamente inalterados, mas cada vez mais concentrados nas economias avançadas e podem ser exacerbados pela combinação de políticas em alguns países. Os níveis de dívida são altos e as vulnerabilidades financeiras acumulam-se. O crescimento inclusivo continua sendo um desafio”, avisa o Fundo.

Em estudo divulgado em junho pelo FMI três dos seus economistas, o vice-diretor do departamento de pesquisas Jonathan D. Ostry, o chefe de divisão Prakash Loungani e Davide Furceri admitem que, “em vez de gerar crescimento, algumas políticas neoliberais aumentaram a desigualdade, prejudicando a expansão duradoura”.

Organismos internacionais convergem quanto a proximidade de uma crise, mas são lacônicos nos diagnósticos e nas análises sobre o papel do sistema financeiro frouxamente regulamentado e mal supervisionado no desencadeamento da Grande Recessão dez anos atrás e das instabilidades atuais.

“O resultado mais surpreendente do abalo global de 2007-2009 foi que não houve mudança estrutural na arquitetura do sistema financeiro internacional, o mesmo que estava no centro da crise”, dispara a respeitada economista inglesa Ann Pettifor, consultora do Partido Trabalhista britânico e de governos e uma das poucas a prever o cataclismo de 2008.

Em vez de reformar o sistema caracterizado por desregulamentação financeira e mobilidade de capital, diz Pettifor, as autoridades responsáveis introduziram duas políticas, o afrouxamento monetário e a consolidação fiscal, isto é, a austeridade. “O resultado foi que o radicalismo monetário e o conservadorismo fiscal desaceleraram a recuperação econômica global de uma maneira historicamente sem precedentes.”

Ao mesmo tempo, diz, incharam os balanços dos bancos centrais para fornecer “suporte vital” ao setor financeiro “moribundo”. Como o setor financeiro, que corresponde a 1% da sociedade, foi o principal beneficiário da generosidade dos BCs, isso intensificou a desigualdade.

“No ano passado, numa época em que a economia global, o ‘paciente semicomatoso’, estava supostamente em recuperação impulsionada pelo crescimento na União Europeia, os bancos centrais ainda sentiam a necessidade de injetar ao menos 3 trilhões de dólares de liquidez no sistema financeiro. A recuperação mundial continua na ‘respiração artificial’ dos bancos centrais, permanece frágil e é propensa a volatilidade e choques”, chama atenção Pettifor.

Segundo Tom Russo, ex-diretor do Lehman Brothers, o primeiro banco a quebrar em 2008, “as sementes da próxima crise provavelmente estão sendo regadas agora”, uma referência ao grande acúmulo de dívida das empresas.

“Eu acho que provavelmente vai ser a mesma questão fundamental de alavancagem que tivemos há dez anos”, alerta Russo. Muitas empresas de segunda linha tomaram emprestado grande volume de recursos porque as taxas de juros estavam baixas e, se não tiverem negócios viáveis ou se estes forem impactados por algum desarranjo na economia ou ainda se as taxas subirem, poderão ter problemas, prevê Stuart Plesser, diretor da agência de riscos Standard & Poor’s.

“Será que essas empresas, que tomaram muito dinheiro emprestado, realmente têm como pagar a dívida que assumiram?”, indaga Plesser.

A situação do famigerado mercado de derivativos, instrumentos financeiros complexos desencadeadores do terremoto financeiro-econômico de dez anos atrás, está longe de ser tranquila. Segundo noticiou o Financial Times, a Commodity Futures Trading Commission, principal órgão regulador estadunidense de derivativos, pressiona bancos e assemelhados para excluírem das suas carteiras os CDS (swaps de default de crédito), um tipo de derivativo que funciona como um contrato para transferência, entre as partes, da exposição a risco de crédito.

O seu volume foi reduzido, mas não o suficiente para evitar “um punhado de negócios controversos que abalaram o mercado este ano”, admitiu o presidente da CFTC, Christopher Giancarlo. Antes a própria entidade criticara o uso dos “padrões fabricados de dívida corporativa” projetados para acionar artificialmente pagamentos em contratos de CDS, uma tática para manipular o mercado. Não adiantou só avisar.

Preocupada com o peso descomunal do sistema financeiro na economia e na vida das pessoas, a jornalista Rana Foroohar escreveu o livro Makers and Takers: How Wall Street Destroyed Main Street, com ampla base de informações oficiais para alertar sobre o problema.

Os ativos do setor de empréstimos informais, diz Foroohar, que incluem os chamados bancos fantasmas, aumentaram em 13 trilhões de dólares desde 2007 para gritantes 80 trilhões em 2014. Com um agravante: apesar da reforma da legislação financeira de 2010, metade do volume de derivativos continua sem controle.

As distorções do sistema financeiro vêm de longe e sua cronologia é a mesma do avanço da condução neoliberal da economia. No início dos anos 1980, prossegue Foroohar, quando a financeirização começou a ganhar força, 80% das operações dos bancos comerciais nos Estados Unidos eram empréstimos para empresas industriais, comerciais, imobiliárias e consumidores.

No fim da década de 1990, a proporção caiu para 52% e, em 2005, era de apenas 28%. Os empréstimos e a criação de empresas diminuíram. No início dos anos 1980, as novas empresas eram metade do conjunto de firmas nos EUA e, em 2011, representavam só um terço, uma tendência com frequência associada à mudança do foco do setor financeiro, de empréstimos para especulação.

Outro efeito da financeirização é a destinação crescente do caixa para recompra das emissões da própria companhia, artifício para mantê-las em valorização permanente e ganhar com isso. As companhias integrantes do índice S&P 500 da bolsa de valores destinam 1 trilhão de dólares por ano para a recompra das próprias ações e a distribuição de dividendos aos acionistas, o que equivale a mais de 95% do seu lucro líquido, em vez de investir esse dinheiro em pesquisa, desenvolvimento de produção ou outra atividade que contribua para o próprio crescimento de longo prazo.

Dinheiro que só corre atrás de mais dinheiro, vê-se, é caminho certo para não gerar empregos e não expandir o mercado, mas assegura uma viagem sem escalas da economia direto para o buraco.

 

Eles estão de brincadeira 

Só desinformação ou interesse explica a louvação, pelo futuro governo e a mídia, do Chile como modelo para a economia de um Brasil dez vezes maior em PIB, população e superfície e com uma indústria ainda situada entre as maiores do mundo, enquanto o país andino depende de produtos primários, agropecuários e outros recursos naturais manufaturados para obter 95% das suas receitas de exportação, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

Talvez os encante o fato de o país andino ter uma riqueza (valor de mercado de ativos financeiros mais ativos não financeiros, principalmente imóveis e terrenos, menos dívidas) por adulto muito maior que a brasileira, segundo o Global Wealth Databook de 2018 do Credit Suisse. São 62,2 mil dólares contra 16,6 mil no Brasil e 11,5 mil na Argentina, informa o banco.

A diferença supera em muito a distância entre os PIBs por adulto calculados pela instituição, de 20,7 mil dólares no Chile, 14,2 mil no Brasil e 21,1 mil na Argentina. Há 819 bilionários chilenos, um número desproporcionalmente elevado, pois corresponde a nada menos que um terço dos 2.464 brasileiros com a mesma fortuna. Nada cresce tanto por lá, conclui-se, quanto a quantidade de ricos.

Na origem do processo está o uso do país como laboratório para a implantação a ferro e fogo em 1973 da única experiência neoliberal radical tida como bem-sucedida no mundo. Um conluio entre militares, Ph.Ds de Chicago mais CIA, FBI, ITT e outras forças do governo e do empresariado chileno e estadunidense possibilitou o experimento que resultou em alguns indicadores positivos conquistados integralmente, entretanto, no período da democratização iniciado no governo Patricio Aylwin em 1990.

Os entraves da alquimia neoliberal são, contudo, numerosos e relevantes, frisa um estudo de fevereiro da OCDE. Depois de elogiar a convergência do PIB per capita com a média do bloco de países e o avanço do consumo, a organização critica o desempenho decepcionante das exportações e dos investimentos e o fato de a desigualdade continuar alta. A inclusão socioeconômica, diz o relatório, requer alto crescimento e aumento da arrecadação de impostos.

“Grande parte da população tem empregos precários. As restrições ao emprego formal bloqueiam a geração de postos de qualidade e uma quantidade excessiva de adultos não tem qualificação básica para o trabalho. A distribuição de renda tem de melhorar, as aposentadorias são baixas, assim como o gasto em pesquisa e desenvolvimento. Muitas regulamentações são ineficientes e as deficiências de infraestrutura reduzem a produtividade.”

Saberão disso o Chicago Boy Paulo Guedes & companhia, os empresários e os militares brasileiros? Por maior que seja a desinformação generalizada, é preciso reconhecer, entretanto, que o capitão eleito presidente provavelmente tinha na cabeça uma ideia de proporção ao dizer em um vídeo de campanha que “é preciso matar uns 30 mil” no Brasil. No Chile sob Pinochet, os militares mataram 3 mil. 

 

CartaCapital, 04 de dezembro de 2018