Desesperança faz trabalhador desistir de procurar emprego

17 de setembro de 2018

 

Idade, falta de estudos e pouco dinheiro para custear busca por trabalho estão entre fatores

 

 

Falta de alento, desânimo, abatimento, esmorecimento. São muitos os sinônimos para desalento no dicionário. No Brasil de hoje, porém, a palavra significa fim da esperança de encontrar trabalho.

Seja por falta dinheiro —custa buscar emprego—, seja por tanto procurar, não encontrar e já se considerar incapaz para funções que aparecem, os desalentados brasileiros já somam 4,8 milhões de pessoas —4,3% da população em idade de trabalhar, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

 

O índice é recorde: mais que o dobro do registrado de 2012 a 2015, quando a taxa de desemprego, hoje em 12,3%, era de apenas um dígito.

O desalentado fica fora das estatísticas de desemprego pelos critérios de análise das pesquisas oficiais. Por essa peculiaridade, alimentam nas planilhas uma contabilidade inversa à realidade: quanto maior o número de desalentados, menor a taxa de desemprego.

Os que perdem a esperança são transferidos para massa de quase 65,5 milhões de pessoas que estão fora da força de trabalho, o universo reservado a estudantes e aposentados, por exemplo.

Assim, os sem trabalhos que sonham em trabalhar estão catalogados em dois grupos. A enfermeira Santa Alves, o carregador José Modesto e Neusa Francisca dos Santos, que já trabalhou em casas de família, por exemplo, que perderam a esperança para sair em busca de uma atividade, não são desempregados.

Nessa categoria estão pessoas como Priscila Figueiredo, a auxiliar de cozinha Jeniffer Aparecida dos Santos e a auxiliar de limpeza Doralice de Souza que, mesmo vendo o dinheiro para a passagem do ônibus ou para imprimir currículos minguar, continuam em busca de uma vaga.

Esses desalentados e desempregados moram em Capão Redondo, zona sul de São Paulo, região em que a taxa de desemprego no ano passado foi de 18,6%, de acordo com a Fundação Seade —a segunda maior taxa da capital paulista, atrás do extremo da zona leste (20,2%).

“Há o desemprego oculto, que não aparece nas estatísticas. Perde-se de vista esse contingente que desistiu [de procurar emprego]”, afirma a professora Belinda Mandelbaum, chefe do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da USP.

 
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Segundo Mandelbaum, os desalentados não são excluídos apenas das estatísticas. Pouco a pouco também são transferidos para uma espécie de limbo social na vida real.

“As pessoas ficam até com restrição de circulação, sem dinheiro para se movimentar pela cidade. O desalento gera até uma imobilidade social, as pessoas ficam restritas a seu âmbito familiar”, afirma.

Ela reforça que o trabalho tem impacto profundo na vida das pessoas. É fundamental na formação da identidade, das capacidades. “Quem trabalha está inserido no mundo, em outros grupos, tem uma identidade social. Tudo se perde quando está desempregado”, diz ela.

Segundo a professora, estudos mostram que há correlação entre desemprego e divórcio, violência familiar e até alcoolismo. A sociedade, diz, vê o pai de família como o principal provedor da casa. Se não consegue cumprir esse papel, pode ser visto como um fracassado —e é aí que a violência familiar pode explodir.

“Ele se vê como alvo de violência no mundo e reproduz isso dentro de casa”, diz.

Claro, isso não ocorre sempre nem em todas as famílias. Mas, segundo Mandelbaum, é potencializado pelo magro colchão de amparo a desempregados que há no Brasil —o seguro-desemprego só tem até cinco parcelas.

“Aqui o desemprego, apesar de ser estrutural, é mais culpa do desempregado. Se o sujeito não está trabalhando é vagabundo. Não dá para por só na conta disso. Não pode ser só do trabalhador o fracasso.”

Mandelbaum defende ainda que, olhando apenas para os números, a realidade pode ser mascarada de muitas outras maneiras.

“O jovem que limpa vidro no semáforo, para fins de estatística, está empregado.”

Conheça algumas histórias de quem desistiu de procurar emprego: 

Santa Alves, 56

 

Sem carteira desde 2010, desistiu de buscar emprego há dois anos. Enfermeira com especialização em enfermagem obstétrica, diz não ver mais lugar para ela no mercado. “Acham que sou muito velha, que não dou conta de carregar um idoso ou uma criança.” Santa só irá se aposentar aos 60 anos, daqui a quatro anos. “Tenho mais uns anos tendo que pensar em um dia de cada vez”. Mora com a filha, de 17 anos, que trabalha como jovem-aprendiz, e o marido, desempregado. “É complicado minha filha ter que ajudar nas contas. Meu marido faz bicos, mas o dinheiro também não dá pra nada”.

Seu último emprego formal foi em 2009. Por problemas na coluna, deixou de procurar emprego há um ano. Tentou várias vezes um auxílio-doença no INSS, já que ainda não tem idade para aposentar. Porém, o benefício por incapacidade é negado porque ele, por ter ficado muito tempo sem contribuir, não está mais coberto pelo seguro social. Modesto aponta que a idade e a sua baixa formação, já que não completou o ensino fundamental, são entraves para conseguir um emprego. “Nem adianta eu me candidatar para alguma coisa que não seja serviço braçal, porque que não passo na seleção”. Ele mora em uma casa da família, conta com a ajuda dos irmãos e também com o bolsa-família para conseguir pagar as contas de luz, água e gás.

Mãe de uma menina de sete meses e dois meninos de 10 anos e 14 anos, ela afirma que não busca uma ocupação pois não tem quem a ajude a cuidar dos filhos. “É muito caro pagar para alguém ficar com eles só para sair e entregar currículo por aí”. Conta que tem recebido auxílio da mãe para pagar as contas da casa. O último emprego com carteira assinada de Neusa é distante. “Nem lembro mais, foi em casa de família. Depois eu trabalhei em outras, mas tudo sem registro.”

São os filhos que dão força para que Priscila não desista de buscar emprego. “É tanto não que a gente leva na cara que só com um motivo muito forte para não desanimar de vez”. Sem renda fixa, tem se virado com alguns bicos que faz em casa de amigas. A família ainda conta com o dinheiro do marido, que continua empregado, mas a situação ficou complicada pois há uma fonte a menos de dinheiro. “Tem menos renda entrando e cada dia as contas estão mais altas. Temos que fazer malabarismos para pagar a conta de luz, que cada dia é mais cara”.

Para conseguir economizar um pouco de dinheiro e evitar gastar muito com a impressão de currículos, a auxiliar de limpeza Doralice pergunta aos selecionadores se consegue preencher suas informações em fichas cadastrais nos locais de seleção. “Assim fico com os currículos impressos na mão para entregar em lugares onde não há ficha disponível. Não é fácil imprimir ou tirar cópias de currículo toda hora, então a gente se vira como pode. O negócio é ter muita fé para não desanimar”. Mãe de dois filhos, ela conta que perdeu o emprego em novembro, quando a empresa em que trabalhava mudou de clientes e substituiu sua mão de obra pela de dois homens. “Não tive o que fazer senão voltar a buscar emprego.”

É com a ajuda da mãe que a auxiliar de cozinha mantém a esperança de voltar a trabalhar. Desempregada há um ano, desde que a empresa em que trabalhava faliu, ela sai duas vezes por semana para entregar currículo, mas depende do dinheiro que a mãe coloca em seu Bilhete Único para se locomover pela cidade. “Se não for isso, não tenho o que fazer. São R$ 8 por dia só de ônibus para procurar trabalho. Mas tenho dois filhos, tenho que dar um jeito. É isso que me faz não desanimar das coisas”.

 

Folha de S.Paulo, 17 de setembro de 2018.