Ataques aos direitos trabalhistas e sindicais prosseguem a todo vapor.
A meta de extinguir a Justiça do Trabalho anunciado pelo presidente Jair Bolsonaro, em sua primeira entrevista após a posse, colocou em cheque o futuro das relações trabalhistas e provocou reação imediata entre magistrados, advogados e sindicalistas. Um dia após a entrevista, a Associação Nacional dos Magistrados (Anamatra) emitiu nota pública criticando a medida e o movimento dos Advogados Trabalhistas Independentes (MATI) ingressou com uma ação no STF questionando a legalidade da proposta (ADPF 561).
Bancada de oposição no Congresso e sindicatos também deverão pressionar o governo contra essa proposta. Na rede de televisão SBT Bolsonaro questionou a necessidade de o Brasil ter uma justiça especializada. “Qual país que tem [Justiça do Trabalho]? Já temos a Justiça normal”, afirmou. “Olha lá nos EUA, eles não têm direito do trabalho e têm emprego”, disse o presidente da República.
Direitos e empregos
Contudo, magistrados discordam dessa conclusão. O juiz do Trabalho e vice-presidente da Associação dos Magistrados do Trabalho de Pernambuco, Rodrigo Samico, rebateu o argumento. “Outros países como a Alemanha, a Itália e a França possuem Justiça do Trabalho em plena atividade. Então, transferir a competência da Justiça do Trabalho para Justiça Comum só iria agravar o quadro de resolução das demandas da Justiça. A Justiça Comum, por possuir um leque muito grande de demandas, já está sobrecarregada. A gente entende que transferir a estrutura não resolve o problema”, afirmou.
“Os juízes do trabalho estão extremamente preocupados porque a proposta de supressão da Justiça do Trabalho é um tema que deve ser discutido com mais profundidade. A gente acha que [a mudança] tornaria mais difícil o acesso à Justiça por parte dos empregadose das próprias empresas. Porque não são só os empregados que recorrem à Justiça do Trabalho. Agora, com a aprovação da Reforma Trabalhista, as empresas também recorrem a ela quando querem homologar uma redução”, explicou Samico.
Na entrevista, Bolsonaro descartou o fim da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), mas antecipou que, assim como na “reforma” trabalhista, pretende flexibilizar os contratos de trabalho. Segundo o presidente, há “muitos direitos e pouco emprego”. “Quando eu disse que era difícil ser patrão no Brasil, os sindicatos disseram que difícil é ser empregado. A eles, eu responderia que mais difícil é ser desempregado”, divagou.
O debate sobre a necessidade de um segmento específico do Poder Judiciário para cuidar das questões trabalhistas não é novo, mas sempre esbarra em polêmicas. Constitucionalmente, a Justiça do Trabalho tem a atribuição de conciliar e julgar ações judiciais entre empregados e empregadores e outras controvérsias decorrentes da relação do trabalho. A estrutura dessa área da Justiça conta com 24 tribunais regionais e tem no Tribunal Superior do Trabalho (TST) seu órgão máximo. A corte é composta por 27 ministros e tem como principal função uniformizar decisões sobre ações trabalhistas, consolidando a jurisprudência desse ramo do direito.
Atribuições do STF
O presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, a Anamatra, Guilherme Guimarães Feliciano, avalia que a proposta de extinguir esse segmento do poder Judiciário para pôr fim ao alto número de processos equivale a “culpar a janela pela paisagem”. “Se o problema que o presidente identifica é o de uma legislação excessivamente protecionista e que, por conta disso, geraria mais litígios trabalhistas do que o necessário, parece-me que o equacionamento proposto não condiz bem com o diagnóstico feito. Há um claro vício aqui na relação de causa e consequência”, diz. “O juiz do trabalho tem a competência constitucional de conhecer e julgar os litígios em função da legislação posta e em função das condições econômicas do País. O fato de se transferir essa competência para a Justiça comum absolutamente não muda esse quadro”, comenta.
Feliciano alerta também que os concursos aplicados aos juízes federais que passariam a julgar as ações trabalhistas não cobram conhecimentos específicos quanto a direito do trabalho e direito processual do trabalho. “Seria uma temeridade esperar que esses juízes passem a julgar essas causas da noite para o dia.” O presidente da Anamatra considera ainda que não caberia ao presidente da República modificar a estrutura do Poder Judiciário. Feliciano lembra que a Justiça do Trabalho está prevista no inciso 4º do artigo 92 da Constituição, mesmo artigo que versa sobre as atribuições do Supremo Tribunal Federal (STF), em seu inciso 1º.
“Se eu posso admitir que o presidente da República, por sua livre iniciativa, sem discutir com o presidente do STF, envie ao Congresso uma proposta de extinção, de supressão desse inciso 4º do artigo 92 da Constituição, então eu também, em tese, posso admitir que o presidente da República apresente uma proposta que suprima o próprio Supremo. Estamos caminhando para isso? Se a estrutura do Poder Judiciário deve ser alterada, a iniciativa deve partir do Supremo, e não de outro poder da República”, concluiu o presidente da entidade que representa os magistrados da Justiça do Trabalho.
Guilherme Feliciano, divulgou nota em que afirma que “nenhum açodamento será bem-vindo”. Para Feliciano, a magistratura do Trabalho está “aberta ao diálogo democrático, o que sempre exclui, por definição, qualquer alternativa que não seja coletivamente construída”. “No que toca à gestão pública, se o problema que o presidente da República identifica é o de uma legislação trabalhista excessivamente protecionista, a gerar mais litígios trabalhistas do que os necessários – tese a se discutir com profundidade junto à sociedade civil e ao Parlamento brasileiro -, a proposta de suprimir a jurisdição trabalhista especializada simplesmente não condiz com o diagnóstico feito. Há um claro equívoco na relação entre causa e consequência, em que se busca culpar a janela pela paisagem”, afirmou Feliciano.
Livre iniciativa
Na nota, o presidente da Anamatra ressaltou que os juízes do Trabalho “têm competência constitucional para conhecer e julgar os litígios trabalhistas que chegam a eles, na medida e do modo que possam chegar, à luz da legislação trabalhista em vigor e em função das condições econômicas do país”. “Transferir essa competência para a Justiça comum, absolutamente, não muda este quadro. A litigiosidade trabalhista continuará rigorosamente a mesma, sob o manto da mesma legislação trabalhista e com os mesmos obstáculos no campo econômico”, observou.
Feliciano frisou ainda que a Justiça do Trabalho – desde o Tribunal Superior do Trabalho até os juízes do trabalho do primeiro e segundo graus – está prevista no artigo 92 da Constituição Federal. “A se admitir que o presidente da República ou qualquer parlamentar, por sua livre iniciativa e sem discutir a questão com o presidente do Supremo Tribunal Federal, possa enviar ao Congresso Nacional uma proposta de extinção da Justiça do Trabalho, suprimindo os correspondentes incisos do art. 92 da Constituição, poder-se-ia admitir também o absurdo de poderem apresentar e aprovar emenda constitucional que suprima o próprio Supremo Tribunal Federal”, alertou Feliciano.
“O raciocínio demonstra como a proposta ventilada por S.Ex.a oculta gravíssimo abalo no sistema de freios e contrapesos sobre o qual se assentam as fundações republicanas. Qualquer iniciativa tendente a alterar a estrutura constitucional do Poder Judiciário brasileiro compete originária e privativamente ao Supremo Tribunal Federal, excluídos os demais poderes da República”, concluiu o presidente da Anamatra.
Riscos políticos
As alterações administrativas no campo trabalhista anunciadas por Bolsonaro também foram contestadas. Uma das tantas medidas criticadas é a transferência da Coordenação-Geral de Registro Sindical para o Ministério da Justiça (MJ), agora sob o comando do ex-juiz de primeira instância Sérgio Moro.
A mudança está expressa na Medida Provisória (MP) 870, publicada na última terça (1º), que alterou a estrutura administrativa do Poder Executivo federal, extinguindo, entre outras coisas, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A pasta era responsável pelos registros e, diante da dissolução, as competências do MTE foram distribuídas para outros órgãos. O registro sindical é a inscrição oficial das entidades de classe no âmbito estatal e tem o objetivo de impedir que mais de um sindicato represente uma mesma categoria profissional.
Para o secretário-geral da Central dos Trabalhadores do Brasil (CTB), Wagner Gomes, em declarações à Rede Brasil Atual, a realocação dessa competência para o MJ traz riscos políticos no sentido de incentivar a criminalização da luta popular e sindical. Do ponto de vista funcional, o Ministério da Justiça é responsável por temas como o combate à pirataria, o enfrentamento a organizações criminosas e o sistema prisional. “Quando colocam a questão do registro pra pasta do Ministério da Justiça, eles querem insinuar exatamente que [sindicato] é caso de polícia, que é um ‘bando de ladrões’. Esse é o simbolismo. É querer desmoralizar o movimento sindical. Nada é feito de graça”, critica Gomes.
O dirigente destaca ainda que a transferência da Coordenação-Geral deve ser interpretada dentro de um contexto mais amplo de medidas que vêm sendo tomadas. O fim do MTE, ressalta, seria um forte sinal do desmonte do sistema de amparo ao trabalhador, que vem sofrendo ataques desde 2016, no cenário pós-golpe. “A partir do momento em que se faz o que foi feito, nós estamos enfraquecendo ainda mais a questão do movimento sindical. Então, pra nós, a questão central é o fim do Ministério do Trabalho”, complementa.
Julgamento de conflitos
Em relação aos impactos no mundo sindical, a “reforma” também enterrou a contribuição sindical obrigatória, enfraquecendo as entidades de classe. Já na reforma administrativa do governo Bolsonaro, houve ainda outras modificações no campo das questões trabalhistas: o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) passaram a ser competência do recém-criado Ministério da Economia.
A pasta é comandada pelo economista neoliberal Paulo Guedes, que, assim como Bolsonaro, tem defendido uma flexibilização ainda maior dos direitos trabalhistas. “A distribuição das funções do MTE representa um desrespeito às próprias funções do Ministério. Mostra que o novo governo passa um sinal de desconhecimento e até mesmo de desprezo sobre o tema das relações de trabalho”, avalia o consultor sindical João Guilherme Vargas Netto, também em decalaração à Rede Brasil Atual.
O ex-vice-presidente da Central Única de Trabalhadores (CUT) e ex-secretário de Trabalho do governo Dilma Rousseff (PT), José Lopes Feijó, destaca que as tentativas de enfraquecimento dos sindicatos se relacionam com outras medidas que podem ser implementadas na gestão Bolsonaro.
Ele lembra, por exemplo, que o novo presidente tem defendido o fim da Justiça do Trabalho, responsável pelo julgamento de conflitos entre patrões e empregados à luz da legislação trabalhista. “Trata-se de uma política deliberada, clara, de desmonte de qualquer possibilidade de os trabalhadores terem direitos e de qualquer possibilidade de eles terem instituições de defesa desses direitos. A última parte do ataque é ao movimento sindical. E como se faz isso? Com a construção de um Estado policial supervisionado pelo ministro da Justiça, que terá em suas mãos a questão do registro sindical. Vamos assistir a um processo de perseguição aos sindicatos”, projeta.
Com informações da Folha de Pernambuco, do IG e da Rede Brasil Atual
Vermelho, 07 de janeiro de 2019