A duração do trabalho enquanto norma de saúde, higiene e segurança.
“As normas jurídicas concernentes à duração do trabalho já não são mais – necessariamente – normas estritamente econômicas, uma vez que podem alcançar, em certos casos, a função determinante de normas de saúde e segurança laborais, assumindo, portanto, o caráter de normas de saúde pública”[1]
Notícia veiculada na página eletrônica do colendo Tribunal Superior do Trabalho, já no distante – em nosso tempo disruptivo – ano de 2004, mencionava que o Presidente da Corte, Ministro Vantuil Abdala, sustentou o fim da prestação de horas extras como forma de estimular a geração de empregos e preservar um direito conquistado pelo trabalhador que é a jornada de oito horas diárias[2].
Destaca a notícia fala do seu então Ministro Presidente: “Edita-se medida provisória para tanta coisa sem importância nesse País, por que não proibir a prestação de horas extras com o objetivo de gerar mais postos de trabalho? Cobrou”.
O legislador ordinário federal de 2017 fez exatamente o oposto. Facilitou, largamente, tanto a negociação individual como a coletiva sobre duração do trabalho e, de maneira mais detida sobre o objeto deste texto, tentou desvencilhar os temas duração do trabalho e saúde do empregado.
Saúde, higiene, segurança e duração do trabalho, deixe-se desde já registrado, são matérias indissociáveis constitucionalmente e convencionalmente, razão pela qual todo e qualquer possível tentativa de segregação na temática não encontra acolhida na ordem jurídica nacional.
O artigo 611-A da Lei n 13.467/2017 enuncia existir prevalência da convenção ou acordo coletivo de trabalho quando, entre outros, houver disposição sobre: a) pacto quanto à jornada de trabalho, observados os limites constitucionais; b) banco de horas anual; c) intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas; d) prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho.
Em seguida, o artigo 611-B dispõe constituir-se objeto ilícito de convenção coletiva ou acordo coletivo a supressão ou redução de, entre outras, normas de saúde, higiene e segurança do trabalho previstas em lei ou em normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho; ao final, não obstante, seu parágrafo único é claro ao informar que regras sobre duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para os fins do disposto no artigo (destaquei).
Como bem assinalado por Paulo Douglas Almeida de Moraes[3], trata-se de uma vã tentativa de se interpretar a Constituição a partir da lei ordinária:
Tal construção constitui uma clara tentativa de afastar o controle de constitucionalidade com base no art. 7º, inc. XXII da CRFB/1988, que prevê o direito fundamental dos trabalhadores de obterem normas que garantam a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de norma de saúde, higiene e segurança, pois, embora esse direito tenha sido parcialmente reproduzido no inciso XVII do art. 611-B, em sendo normas de duração do trabalho, por força do parágrafo único do mesmo dispositivo, o inciso XVII não poderia ser utilizado para afastar a validade de instrumentos coletivos que venham a suprimir ou reduzir direitos relativos à duração do trabalho.
Para além de uma interpretação constitucional a partir da lei ordinária, tentou o legislador, a bem da verdade, alterar o estado das coisas, tentando fazer do quadrado redondo, como se a lei tudo pudesse fazer.
A tentativa de desconectar duração da saúde no trabalho também vai contra o artigo 4º da Convenção nº 155 da OIT, ratificada pelo Brasil, segundo o qual qual deverá ser adotada uma política com o objetivo de prevenir os acidentes e os danos à saúde que forem consequência do trabalho, tenham relação com a atividade de trabalho, ou se apresentarem durante o trabalho, reduzindo ao mínimo, na medida que for razoável e possível, as causas dos riscos inerentes ao meio ambiente de trabalho.
A mesma Convenção nº 155, artigo 3º, “e”, traz a definição de saúde com relação ao trabalho, esclarecendo que abrange não só a ausência de afecções ou de doenças, mas também os elementos físicos e mentais que afetam a saúde e estão diretamente relacionados com a segurança e a higiene no trabalho.
Retomando-se a notícia do ano de 2004 mencionada no início do presente escrito, o então Presidente do Tribunal Superior do Trabalho citou diversos estudos correlacionando a incidência de acidentes de trabalho e a prestação de jornada de trabalho extenuante. Demonstraria a estatística que a quantidade de acidentes em sobrejornada seria três vezes superior ao registrado em jornada normal.
No mesmo caminho, o anuário da saúde do trabalhador de 2015, do DIEESE[4], comprova a posição do Brasil de recordista em acidentes de trabalho e aponta as jornadas excessivas como integrantes do rol das causas de adoecimento, infortúnios relacionados ao trabalho e custos para a previdência social.
Acerca dos custos dos acidentes, consoante dados do Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho (https://observatoriosst.mpt.mp.br/), no período de 2012 a 2017 foram gastos R$26.235.501.489 com benefícios acidentários (auxílio-doença, aposentadoria por invalidez, pensão por morte e auxílio-acidente – sequelas) concedidos no período, sem considerar o estoque de anos anteriores pagos no mesmo intervalo.
Ainda antes da vigência da Lei nº 13.467/2017, magistrados, membros do Ministério Público do Trabalho, juristas, auditores-fiscais do Trabalho, aprovaram o Enunciado 11, na 3ª Comissão da 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, assim ementado:
É INCONSTITUCIONAL O PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 611-B DA CLT, POIS AS NORMAS E INSTITUTOS QUE REGULAM A DURAÇÃO DO TRABALHO, BEM COMO SEUS INTERVALOS, SÃO DIRETAMENTE LIGADOS ÀS TUTELAS DA SAÚDE, HIGIENE E SEGURANÇA DO TRABALHO COMO ESTABELECIDAS PELOS ARTS. 7º, XIII, XIV E XXII, 196 E 225 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, PELOS ARTS. 3º, B E E, E 5º DA CONVENÇÃO 155 DA OIT, PELO ART. 7º, II, B E D, DO PIDESC (ONU), PELO ART. 7º, E, G E H, DO PROTOCOLO DE SAN SALVADOR (OEA), E PELO PRÓPRIO ART. 58 DA CLT, QUE LIMITA A JORNADA A OITO HORAS DIÁRIAS, SENDO, ASSIM, INSUSCETÍVEIS DE FLEXIBILIZAÇÃO POR CONVENÇÃO OU ACORDO COLETIVOS.
Igualmente, e já em maio de 2018, no XIX Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – CONAMAT, foi aprovado o Enunciado 12, na Comissão 3, com diretriz semelhante:
SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO. NEGOCIADO SOBRE O LEGISLADO: INCONSTITUCIONALIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 611-B DA CLT. REVELA-SE INCONSTITUCIONAL ESSE DISPOSITIVO DA LEI DA REFORMA TRABALHISTA QUE PERMITE A FLEXIBILIZAÇÃO DA JORNADA DE TRABALHO E DO INTERVALO INTRAJORNADA, POR OFENSA EXPRESSA À CONSTITUIÇÃO FEDERAL, QUE ASSEGURA A TODOS OS TRABALHADORES UM AMBIENTE LABORAL SADIO, COM JORNADA MÁXIMA E INTERVALOS MÍNIMOS NECESSÁRIOS, QUE PERMITA O DESCANSO E SUA RECUPERAÇÃO FÍSICA, COM A OBSERVÂNCIA DA REDUÇÃO DOS RISCOS INERENTES AO TRABALHO, CONFORME ESTABELECIDO NO ART. 7º, INCISO XXII, VISANDO CONCRETIZAR A CONSTITUIÇÃO, QUE TEM COMO FUNDAMENTOS DA REPÚBLICA A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS VALORES SOCIAIS DO TRABALHO, COMO ESTABELECIDO NO ART. 1º, INCISOS III E IV, DA CARTA MAGNA.
Para além de orientações não vinculantes das Jornadas e Congressos de profissionais da área do trabalho, há muito tempo o c. TST já reconhece, em sua Súmula, a relação entre saúde e duração do trabalho; nesse sentido, eis o inciso II da Súmula nº 437:
É inválida cláusula de acordo ou convenção coletiva de trabalho contemplando a supressão ou redução do intervalo intrajornada porque este constitui medida de higiene, saúde e segurança do trabalho, garantido por norma de ordem pública (art. 71 da CLT e art. 7º, XXII, da CF/1988), infenso à negociação coletiva.
Propositadamente, a apenas ao final do texto, após demonstrados diversos argumentos, trouxe ao leitor a minha última pá de cal: a visão constitucional da saúde e duração do trabalho.
A Constituição brasileira traz no artigo 7º, inciso XIII, limites expressos sobre a duração do trabalho, não podendo ser superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho.
Na mesma linha, o inciso XIV do citado artigo 7º dispõe sobre o limite de jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva.
Já o inciso XXII, ainda do artigo 7º, prescreve a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.
E para arrematar, o artigo 196 da Constituição assevera que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos.
Muitos outros dispositivos na mesma linha profilática e saudável poderiam ser citados, mas dispensarei o meu leitor da transcrição do texto constitucional, obviedade que parece não ter sido clarividente de maneira razoável ao legislador ordinário quando tentou dissociar duração e saúde do trabalho.
Por todo o exposto, outra conclusão não resta a não ser a inconstitucionalidade e inconvencionalidade do parágrafo único do artigo 611-B da CLT, pois os limites para a duração do trabalho desempenham papel fundamental para preservação da saúde e segurança dos trabalhadores, além de contribuírem para o equilíbrio dos diversos campos da vida da pessoa humana.
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[1] DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo, LTr, 2014, p. 901.
[2]http://www.tst.jus.br/home?p_p_id=15&p_p_lifecycle=0&p_p_state=maximized&p_p_mode=view&_15_struts_action=%2Fjournal%2Fview_article&_15_groupId=10157&_15_articleId=242294&_15_version=1.0
[3] MORAES, Paulo Douglas Almeida de. Manual de Apoio, Inconstitucionalidades da Lei nº 13.467/2017. Limites Jurídicos à flexibilização da jornada de trabalho. BRASIL, MPT, 2017, p. 87.
[4] https://www.dieese.org.br/anuario/2016/Anuario_Saude_Trabalhador.pdf