Jorge S. Maior: a retórica vazia e panfletária contra a “CLT fascista”

10 de janeiro de 2019

No Brasil, durante décadas, falar mal da CLT e dos direitos dos trabalhadores acabou se tornando uma estratégia de políticos para se aproximarem do mercado. O atual Ministro da Economia parece conhecer bem essa fórmula retórica e, mesmo depois de uma “reforma” profunda, que quase aniquilou todos os direitos trabalhistas, não quis abrir mão dela.

por Jorge Luiz Souto Maior*

 

 

 

 

O atual Ministro da Economia, que promete inovar, acaba de lançar uma tese “novíssima” no cenário nacional: a de que a legislação trabalhista da CLT é fascista. Mas foi além e sentenciou que um governo democrático não pode conviver com uma legislação fascista. Em suas palavras: “o governo democrático vai abandonar a legislação fascista da CLT” [i].

Pois se a legislação trabalhista é fascista e se governos democráticos não podem conviver com ela, então, teriam sido fascistas os governos desde quando uma legislação trabalhista passou a existir no Brasil, o que atinge, portanto: Deodoro da Fonseca (1889 a 1891); Floriano Peixoto (1891 a 1894); Prudente de Moraes (1894 a 1898); Campos Sales (1898 a 1902; Rodrigues Alves (1902 a 1906); Afonso Pena (1906 a 1909); Nilo Peçanha (1909 a 1910); Hermes da Fonseca (1910 a 1914); Wenceslau Brás (1914 a 1918); Delfim Moreira (1918 a 1919); Epitácio Pessoa (1919 a 1922); Arthur Bernardes (1922 a 1926); Washington Luís (1926 a 1930); Getúlio Vargas (1930 a 1937 – 1937 a 1945); José Linhares (1945 a 1946); Gaspar Dutra (1946 a 1951); Getúlio Vargas (1951 a 1954); Café Filho (1954 a 1955); Nereu Ramos (1955 a 1956); Juscelino Kubitschek (1956 a 1961); Jânio Quadros (1961); João Goulart (1961 a 1964); governos militares (1964 a 1985); José Sarney (1985 a 1990); Fernando Collor (1990 a 1992); Itamar Franco (1992 a 1995); Fernando Henrique (1995 a 2003); Lula (2003 a 2011); Dilma (2011 a 2016); Temer (2016 a 2018).

Seriam fascistas, igualmente, as Constituições brasileiras de 1934; 1946; 1967; 1988, que trouxeram, todas elas, elencos de direitos trabalhistas.

Muito rapidamente (porque essa conversa é bastante cansativa), vale lembrar que a CLT (o Decreto 5.452/43), como o próprio nome diz, é uma Consolidação das Leis do Trabalho que já existiam no Brasil e que foram assim formalizadas em um longo processo de reivindicações e embates entre empregados e empregadores. Leis trabalhistas no Brasil existiram desde a Primeira República e regulavam as relações de trabalho no período, sobretudo, as normas coletivas. Além disso, dos seus 921 artigos, continuavam em vigor, em 2016, apenas 188 artigos. A CLT, ao longo de sua história, foi alterada em todos os governos, com exceção de Jânio e, em 2017, sofreu uma profunda modificação, com a denominada “reforma” trabalhista, que atingiu mais de 200 de seus dispositivos.

Ou seja, a tal CLT fascista, cópia da Carta del Lavoro de Mussolini, é uma figura mitológica, que sempre serviu aos argumentos retóricos de ataque aos direitos dos trabalhadores, que estão muito longe de ser dádivas do Estado. A Carta del Lavoro, inclusive, de 1927, foi uma Carta de Princípios, com 30 artigos, do governo fascista de Mussolini, que em nada se assemelha aos 921 artigos iniciais da CLT, a não ser quanto à vinculação do sindicato ao Estado, mas essa parte da CLT, prevendo essa vinculação, chegou a ser revogada, integralmente, em 1946, no governo de José Linhares e foi revigorada no governo de Gaspar Dutra, em 1946. De todo modo, essa vinculação foi juridicamente rompida desde 1988, com a promulgação da atual Constituição.

Não bastasse isso, o atual texto da CLT foi completamente reformulado em 2017, sendo certo que os dispositivos não alterados acabaram sendo revigorados. Uma “reforma” que, é bom que se diga, já vem produzindo efeitos desastrosos para os trabalhadores (com grande potencial de influir negativamente na economia e no orçamento da Previdência), como o aumento do sofrimento no trabalho[i], a ampliação da precariedade de direitos[ii] e a piora das condições de trabalho[iii], além de uma diminuição generalizada de benefícios e ganhos normativos[iv].

O resultado matemático dessa equação, ou seja, considerada apenas a quantidade de artigos, afastadas, pois, quaisquer conotações ideológicas, é o de que a CLT de 1943, de suposta origem fascista, não existe na realidade concreta atual.

A questão é que, no Brasil, durante décadas, falar mal da CLT e dos direitos dos trabalhadores acabou se tornando uma estratégia de políticos para se aproximarem do mercado. O atual Ministro da Economia parece conhecer bem essa fórmula retórica e, mesmo depois de uma “reforma” profunda, que quase aniquilou todos os direitos trabalhistas, não quis abrir mão dela.

O problema é que não tendo mais “flexibilização” para oferecer, vez que tudo que se poderia fazer neste sentido já foi feito, o Ministro quer ofertar trabalho sem direitos, por meio da dita “Carteira Verde e Amarelo”, que seria, segundo se especula (porque nenhum projeto concreto foi apresentado a respeito), uma opção do trabalhador para obtenção do primeiro emprego.

A questão é que o instrumento jurídico que garante direitos aos trabalhadores não é a CLT e sim a Constituição Federal e esta não permite, em nenhum de seus dispositivos, que uma relação de emprego seja desprovida de direitos, mesmo sob o argumento de uma suposta inserção no “primeiro emprego”, ainda mais quando essa inserção seja vislumbrada como fórmula administrativa para substituir trabalhadores empregados, com direitos, pelos tais “trabalhadores modernos”, sem direitos.

Então, a retórica do Ministro da Economia cai em uma contradição insuperável e reveladora, já que, de fato, seu governo democrático, retórica à parte, não estaria se opondo à “legislação fascista da CLT” e sim à Constituição Federal da República, instituidora do Estado Democrático, o que coloca em questão, exatamente, a aptidão democrática do proponente, já que um governo democrático deve respeito à Constituição.

Claro que é bastante positiva a declaração no aspecto da preocupação em defender a democracia. O problema é que, estando equivocado o pressuposto, pode-se chegar a um resultado invertido da defesa inicialmente apresentada.

Sérios riscos são atraídos quando se adotam retóricas que servem à perversão de sentidos. Se seguimos esse desvio, daqui a pouco alguém dirá que a Constituição Federativa da República do Brasil é fascista (senão “comunista”) e que o autoritarismo é que é democrático. Ora, diante do pressuposto adotado, corre-se o risco de que se venha a considerar a considerar que ou o governo encontra um argumento para destruir a legislação trabalhista como um todo, incluindo a própria Constituição, ou que, não concluindo essa obra, fique para a história como mais um que não eliminou o “entulho” fascista da legislação trabalhista no Brasil.

Uma fórmula concreta para se avaliar esse pêndulo será verificar como o governo, que, para se proclamar democrático, abomina a legislação trabalhista, acusando-a de fascista, vai lidar com as greves dos trabalhadores, incluindo os servidores públicos.

Não estou aqui defendendo a perenidade da legislação trabalhista e muito menos me opondo a qualquer fórmula que possa – de forma séria e honesta – tentar contribuir para melhorar a distribuição da riqueza, aumentar a empregabilidade, diminuir as desigualdades ou aniquilar privilégios. Mas, primeiro, é preciso dizer as coisas às claras, sem retóricas discursivas, que servem apenas para mascarar propósitos. Segundo, é essencial apreender com bastante reservas todas as ideias que, para melhorar a economia do país, partam da redução de direitos e de ganhos daqueles que não detêm posses e que são apenas detentores de parcos direitos, que já se apresentam muito mais como promessas do que como realidades. E, terceiro, é fundamental reconhecer que o compromisso que a sociedade brasileira nunca assumiu verdadeiramente foi o de tentar levar adiante um efetivo projeto de inclusão e de ascensão social com direitos e concretas melhorias das condições de vida da população como um todo, fazendo com que um pedido de sacrifício daqueles que sempre foram sacrificados não recoloque o país nos trilhos e implique, isto sim, um descarrilar dos poucos vagões que ainda estavam no lugar.

Por ora, o que se espera do Ministro da Economia é que nos poupe de tratar com retóricas vazias e panfletárias (desprovidas de um mínimo de seriedade e de conhecimento) questões tão relevantes para o país como as que dizem respeito à história, à consagração e à efetivação dos direitos constitucionais trabalhistas.

[i]. https://www.infomoney.com.br/mercados/politica/noticia/7850674/guedes-di…, acesso em 03/01/19. 
[i]. https://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2018/11/crise-afeta-saude-me…, acesso em 03/01/19.
[ii]. https://www1.folha.uol.com.br/seminariosfolha/2018/12/e-tempo-de-informa…, acesso em 03/01/19.
[iii]. https://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2018/08/desmonte-da-legislac…, acesso em 03/01/19.
[iv]. https://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2018/04/numero-de-acordos-e-…, acesso em 03/01/19.

Originalmente publicado no blog <www.jorgesoutomaior.com>

alt*Jorge Souto Maior é professor livre-docente de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (desde 2002); coordenador do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital – GPTC; membro da Rede Nacional de Grupos de Pesquisa em Direito do Trabalho e da Seguridade Social – RENAPEDTS; e Juiz do Trabalho (desde 1993), titular da 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí/SP (desde 1998).

 

Vermelho, 10 de janeiro de 2019