A República Velha foi marcada por intensos conflitos e mudanças sociais no Brasil. Grandes donos de terras, obrigados a substituir a mão de obra escravizada pela assalariada, enfrentaram ondas de insatisfação de trabalhadores e rebeliões em vários pontos do País. Essa época produziu importantes figuras pouco conhecidas pela história oficial. É o caso de Joseph Jubert, professor e advogado francês que enfrentou fazendeiros e desafiou autoridades por melhores condições de trabalho nas lavouras.
O professor e advogado francês Joseph Jubert
Por sua luta, Jubert foi tachado de “vagabundo”, “perigoso e com intuitos subversivos”. Após projetar escolas para trabalhadores e seus filhos – que seguiriam uma linha de ensino distante dos dogmas da instituição e mais próxima da ciência –, entrou em confronto com membros da Igreja Católica. Quando ele defendeu uma paralisação de trabalhadores nas fazendas de café, jornais da época cobraram “providências justas da polícia pela paz e prosperidade da terra”, enquanto era intimidado no Judiciário por “interferir na atividade econômica” e “iludir os colonos”.
Jubert recebeu o apelido de “o terrível anarquista”, por mais que registros da época mostrem um sujeito culto e distante de qualquer ato de violência. Perseguido, respondeu a diversos processos durante suas passagens por cidades do interior de São Paulo. Graças a essas ações, foi preso, torturado e, também, apagado da história.
Nascido em Lyon por volta de 1876, Jubert veio ao Brasil ainda criança, em um período de intensa imigração de trabalhadores assalariados europeus, que chegavam ao país para substituir a mão de obra escravizada nas fazendas. Muitos deles acabaram enganados sobre as reais condições encontradas por aqui. “A maior parte vinha na expectativa de possuir terras e fugir da fome. Quando chegam aqui e são jogados para trabalhar nos cafezais, passam por maus tratos, dívidas com os armazéns, e muitos desses colonos vão se rebelar”, conta Ricardo Rugai, doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP).
É nesse contexto, de desapontamento e abusos sofridos pelos colonos, é que as ideias de afronta à ordem vigente ganham força – e que Jubert inicia sua politização. “A ideia dominante era a de que anarquistas, comunistas, sindicalistas e qualquer outro ator político tenham vindo para cá já politizados. Mas, na verdade, a maioria dos europeus se tornou anarquista, por exemplo, aqui no Brasil”, conta Rugai.
Jubert se aproximou dos anarquistas, mas não se reconhecia como um deles. “Ele era contra o poder do Estado, da Igreja e da propriedade privada. Mas se declara um livre pensador”, afirma Sandra de Souza, que estudou a história de Jubert durante o mestrado pela Universidade São Francisco (USF). A distância inicial, porém, não o livrou de ser tachado de perigoso. Logo, o francês foi apelidado de “o terrível anarquista”, alcunhada dada por um jornal, e passou a sofrer perseguições de representantes da oligarquia rural.
Problemas com a Justiça
O primeiro local em que Jubert teve problemas por causa de suas contestações é Atibaia, cidade no interior de São Paulo com milhares de imigrantes trabalhando nas lavouras. Em meio a discussões sobre as novas relações de trabalho e seus consequentes conflitos, o francês – que atuava como professor e advogado – começou a enfrentar dificuldades.
Em 1907, ele foi processado pelo Judiciário local, com base no artigo 399 do Código Penal da época, por não possuir emprego fixo, sendo tachado como “vagabundo” e “vadio” pela sociedade da cidade, já que o processo era público. Ao longo de sua trajetória no Brasil, ele responderia ainda a outros processos como forma de intimidação pelas suas atividades. “Os processos eram utilizados para conter os chamados agitadores”, diz Souza.
Após ser processado em Atibaia – e provavelmente absolvido –, Jubert se muda para a vizinha Bragança Paulista como forma de diminuir a pressão sobre ele. Distante apenas 25 quilômetros, a nova cidade era famosa pelas fazendas de café e abrigo de milhares de imigrantes, principalmente italianos e portugueses. Um cenário fértil para a divulgação das novas ideias.
Ali, o francês ajudou a fundar a Liga Operária, uma associação que lutava por melhores condições de trabalho, salário mínimo e definição de jornada máxima, em um período no qual as leis trabalhistas ainda não existiam. Após distribuir um boletim da Liga, escrito em português e italiano, com tais reivindicações, Jubert foi processado por fazendeiros locais como forma de intimidação por “iludir a boa fé dos colonos e causar uma paralisação forçada”.
O processo foi baseado no artigo 205 do Código Criminal da época que previa penas de prisão por “causar suspensão do trabalho para impor aos operários ou patrões aumento ou diminuição de serviço ou salário”. Segundo os produtores rurais, a intenção do professor para com os trabalhadores estrangeiros era “despertar-lhes paixões ruins, visando desviá-los dos trabalho, incitando à greve”, de acordo com o processo, de 1911.
“Ou seja, para a Justiça, o operariado não possuía vontade própria, [os trabalhadores] estavam sendo enganados”, conta Sandra. Os acusadores eram os fazendeiros Olympio Barra, Theophilo Francisco da Silva Leme e Felippe Rodrigues de Siqueira – os dois últimos deram seu nomes a vias importantes da cidade até hoje.
Para além da pressão dos donos de fazendas, a imprensa também auxiliava a proteger o status quo. Em artigo, o jornal Cidade de Bragança aconselha os colonos a “não serem ingratos para os patrões que lhe estimam e que não venham servir a anarquia social”. Jubert dispensou advogados no caso e fez a própria defesa, mostrando plenos conhecimentos jurídicos. Com a pressão dos fazendeiros, juízes das comarcas próximas davam indicativos de que o professor seria considerado culpado por forçar os trabalhadores a pararem.
Mas, dado o parentesco e as ligações próximas dos julgadores com os acusadores, os três primeiros juízes foram considerados impedidos, graças aos recursos impetrados pela defesa. Assim, foi-se necessário a nomeação de um quarto juiz, da cidade de Jundiaí, que considerou a denúncia improcedente. Em pouco tempo, entretanto, diversas greves foram registradas no município, mobilizando cerca de mil colonos em sete fazendas da região, fazendo com que o conflito social se agravasse.
Educação versus Igreja
Após essas paralisações do trabalho, a pressão ficou cada vez mais forte e o cerco ao francês se apertou. Outra ideia do francês a causar polêmica foi o plano de fundar uma escola para os trabalhadores e seus filhos. Chamadas de Escolas Modernas, as instituições eram inspiradas nas ideias do pedagogista anarquista espanhol Francisco Ferrer y Guardia. Meninos e meninas estudariam juntos (até então uma inovação). Não havia exames e castigos. Acima de tudo, era uma educação com pouco espaço para o ensino religioso.
“O modelo de Ferrer é, justamente, uma educação que tenha por base um modelo científico aos estudantes”, diz Silvio Gallo, professor doutor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “É a razão contra o dogma. A ideia era contrapor a coisa pragmática com uma educação científica. Ferrer defende uma coeducação das classes, uma igualdade entre homens e mulheres e que eles deveriam ser educados juntos”, afirma Gallo.
O plano da escola fez com que Jubert virasse alvo também da Igreja Católica, que, por meio do Centro Católico, associação destinada à defesa da religião, recebia recursos municipais para bancar a única escola da região. O padre Leonardo Gioiele, vigário de uma das paróquias e vice-presidente da associação, processou Jubert sob acusação de calúnia e injúria, após o francês iniciar uma agenda de conflitos com o padre por causa dos rumos da educação na cidade.
O professor foi além e criticou a postura do padre em relação à vida social. Em artigo no jornal A Lanterna, de 1910, Jubert afirmou que “padre Leonardo, que como um anjo de bondade, foi surpreendido no quintal de uma família, ao pé de uma jabuticabeira, a espera de administrar a sua bondade a certa mulher casada”.
O Centro Católico era presidido por um dos fazendeiros responsáveis pelo primeiro processo contra francês em Bragança, acerca da distribuição dos boletins, o que dá uma ideia de como o poder econômico e a Igreja andavam de mãos dadas na época. “Esse processo por injúria continua na mesma forma de intimidação feita pelos aliados, fazendeiros e membros da igreja, em cima de Jubert”, diz Sandra de Souza.
Ele denunciou ao jornal A Lanterna, no início de 1911, que vinha sofrendo ameaças por meio de cartas anônimas e recados. Também afirmou que foi convidado a acompanhar policiais até a delegacia da cidade, onde foi revistado e ameaçado pelo delegado caso continuasse a falar do padre. Nessa ação do padre e seus aliados, Jubert é condenado a cinco meses de prisão e ao pagamento de uma multa de cerca de 400 mil réis, um valor considerável à época e, praticamente, impossível de ser obtido por um trabalhador.
Sorocaba, prisão e tortura
Após ter sido condenado, Jubert se mudou a Sorocaba como forma de fugir da punição. A cidade contava com grandes tecelagens e um amplo comércio de gado graças à ferrovia que a ligava a Santos. Ele passou então a dar aulas, por três anos, em uma Escola Moderna que já funcionava por lá. Paralelamente, também auxiliou a abertura de outra Liga Operária na região. Em 1912, esteve à frente da defesa de operários que trabalhavam na cidade de Votorantim, onde, após a confusão inicial, um promotor de justiça tentou expulsá-lo da cidade.
Segundo Jubert, em artigo no jornal A Lanterna, de 1912, as ameaças de deportação eram constantes, mesmo que ele tivesse cidadania brasileira e fosse apto a votar. No ano seguinte, o Correio Paulistano relata que Jubert, chamado de “anarquista perigoso e com intuitos subversivos” pelo periódico, é preso após o desfecho de uma ação por calúnia e difamação promovida por um advogado, Octávio Guimarães, após Jubert ter discutido com Guimarães nas páginas dos jornais locais, trocando artigos acusatórios sobre educação.
Mesmo com a sentença, Jubert vai à delegacia pedir autorização para um comício, ignorando o resultado do julgamento sobre esse processo por calúnia. O comício, claro, não ocorreu. Torturado nos primeiros dias de prisão em São Paulo, para onde foi mandado, o professor ficou preso em uma pequena cela, onde só podia ler livros religiosos. Os carcereiros locais molhavam o chão da cela duas vezes por dia, o que o impedia de deitar e o fez desenvolver artrite.
Após a prisão de Jubert, anarquistas de todo o país fizeram uma campanha por sua libertação e buscarem doações para auxiliar o pagamento das multas impostas pela Justiça. Só depois de quatro meses, Jubert é libertado, quando decidiu retornar ao interior. Depois de Sorocaba, o professor seguiu para Bauru, onde se tornou responsável pela Escola Moderna da cidade, além de lecionar nas de Taquaritinga e Cândido Rodrigues. Ali, continuou a busca por inaugurar centros destinados à educação.
Jubert morreu por volta de 1945, na capital, após uma vida marcada pela contestação do poder. Mesmo com a trajetória de lutas a favor dos trabalhadores e da educação, histórias como a de Joseph Jubert permanecem escondidas do cenário nacional. “Há um trabalho de ocultamento de memória de lutas, do poder vigente no Brasil, há muito tempo”, analisa Ricardo Rugai.
Além da censura do Estado, a hegemonia do Partido Comunista do Brasil na esquerda, a partir da década de 1930, e o declínio do anarquismo dificultaram a divulgação de histórias como a de Jubert.
Vermelho, 05 de agosto de 2019