REFLEXÃO TRABALHISTA
Por Márcio Chaer e Fernando Martines
A alta demanda pela Justiça do Trabalho não é indicativo de um Judiciário paternalista com o trabalhador. É indicativo de que os direitos trabalhistas não são respeitados, de forma sistêmica, no país, mas é sinal, também, da confiança da sociedade, notadamente dos trabalhadores e trabalhadoras, em uma instituição, o que deve ser celebrado. É o que afirma o juiz Jorge Souto Maior, recém-promovido a desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região.
Segundo ele, a noção de que a Justiça do Trabalho protege indevidamente o trabalhador é falsa. Prova disso é que a Justiça comum também costuma dar ganho de causa aos autores das ações. Não é uma questão de proteção, diz ele, mas reflexo do “incômodo” de mover um processo judicial. Só procura a Justiça quem tem alguma expectativa de direito, que procura um advogado, encontra testemunhas, junta provas. “Quem propõe a ação tem que estar muito convicto que tem um direito, pois litigar não é algo gostoso de se fazer”, afirma o desembargador, em entrevista à ConJur.
O magistrado é enfático em suas críticas à reforma trabalhista — que, para ele, não foi uma reforma, mas uma lei para atender a interesses “dos conglomerados econômicos”. Souto Maior critica a falta de debate e de estudos sérios para embasar o texto da lei, que chegou ao Congresso com seis artigos e saiu com mais de cem.
Leia a entrevista:
ConJur — O Brasil precisa de uma Justiça do Trabalho?
Jorge Souto Maior — O Brasil, na situação atual, pensando na realidade, precisa de um Poder Judiciário que solucione os conflitos que decorrem de um indevido desrespeito à ordem jurídica.
ConJur — Mas a Justiça do Trabalho não protege excessivamente o empregado?
Jorge Souto Maior — Estatisticamente as procedências são maiores que as improcedências, mas essa estatística é meia verdade. Primeiro que as improcedências totais correspondem à minoria dos processos. Então a grande gama é de procedências parciais, o que significa que na maior parte das vezes os trabalhadores ganham um pouco e perdem um pouco. Se você fizer um aprofundamento desse dado você poderá chegar à conclusão, somando tudo, de que ainda há mais procedências dos trabalhadores do que improcedências. Muito bem, só que se você fizer esse mesmo estudo na Justiça comum, na Justiça cível, você verá que na maioria dos casos são os autores que ganham. Por que o autor ganha mais que o réu na Justiça comum? A Justiça comum protege o autor?
ConJur — Não seria por que entrar na Justiça comum é algo trabalhoso e custoso, e por isso as pessoas só o fazem com convicção de quem tem direitos?
Jorge Souto Maior — Quem impulsiona o processo é o autor, então você procura um advogado, entra na Justiça e passa por todas essas etapas. Você tem de estar muito convicto, é um sofrimento, as pessoas acham que entrar na Justiça é gostoso. Não é, é incômodo. Tem que ir na audiência, tem que arranjar testemunha, tem que passar pela situação de enfrentar um juiz. Não é tão simples. Então esse autor que passa a se submeter a isso, o que ele faz? Ele tem que ter pelo menos uma impressão que um direito dele não foi satisfeito e uma avaliação de algum profissional de que realmente ele tem razão. A partir disso é que ele vai à Justiça. O dado estatístico que os reclamantes mais ganham que os reclamados não é que a Justiça esteja protegendo indevidamente os trabalhadores, é fruto da própria lógica do conflito, que está estabelecido também nos conflitos da Justiça comum. E, invertendo tudo e partindo de pressupostos equivocados, a lei da reforma, agora, tenta onerar o reclamante-trabalhador, na Justiça do Trabalho, de um modo que nem mesmo ocorre com as partes na Justiça Comum, prevendo custo processual também para quem for beneficiário da justiça gratuita.
ConJur — E quanto ao ônus da prova na Justiça do Trabalho?
Jorge Souto Maior — Não é natural que o trabalhador tenha que ser a parte a provar os fatos de uma relação de emprego, que é uma relação de trato sucessivo. Por que que existe uma Justiça especializada para essa relação específica, que é a relação de trabalho? Por causa da desigualdade material que existe entre as partes. A técnica processual deve refletir essa realidade. A prova, em geral, é do empregador (como dito até mesmo na “reforma” trabalhista), porque é maior a sua aptidão para a prova, já que detentor, por obrigação legal, da documentação dos fatos que permeiam a relação. Não fosse assim, o acesso à justiça não se consagraria em acesso à ordem jurídica justa. Imaginemos a situação de uma pessoa que trabalhe numa empresa qualquer durante cinco anos. Durante esses cinco anos essa relação se perfaz a cada dia. Um dia sai mais cedo, um dia sai mais tarde. Cada dia é uma coisa diferente. E vamos imaginar que efetivamente ele tenha trabalhado uma hora extra, ou duas, e que não tenha recebido essas horas. E que tenham sido dias diferentes a cada dia e durante cinco anos. Como ele vai provar todas essas horas extras? É muito difícil, praticamente impossível. Teria de ter uma testemunha que o tivesse acompanhado todos os dias e em todas as horas.
ConJur — O senhor afirma que é falsa a noção de que o trabalhador sempre ganha, mas essa noção é generalizada. Isso não impulsiona o trabalhador a acreditar que para ganhar é só entrar?
Jorge Souto Maior — Isso, de fato, não acontece. O trabalhador não acha que basta entrar para ganhar, mas confia que sua demanda ao menos será ouvida, e isso é algo positivo, não negativo. O pobre, vamos colocar dessa forma, os trabalhadores, as pessoas que não detêm posses na realidade brasileira, desconfiam da institucionalidade. Não acreditam no Estado, porque sofrem as consequências de uma sociedade injusta. E quando você tem esse dado de que trabalhadores acreditam na Justiça do Trabalho, isso é extremamente positivo, porque há uma instituição que se aproxima da maioria enorme da população brasileira. Esse dado é extremamente positivo. É algo buscado desde o movimento de acesso à Justiça, iniciado em Florença (Itália). E essa facilitação do acesso à Justiça também não altera a realidade de que as decisões judiciais, juridicamente fundamentadas, devam ser técnicas, declarando o direito de quem, efetivamente, tem direito.
ConJur — O senhor acha necessário que trabalhadores que ganhem muito bem e até mesmo advogados, especialistas em seus direitos, devam ser tratadas da mesma forma que trabalhadores com renda baixa?
Jorge Souto Maior — O que está fincado na lei é que os direitos trabalhistas constituem a base mínima da integração de um trabalhador numa sociedade que se pauta por uma lógica sobretudo produtiva. É um patamar mínimo de integração social, política e econômica dessa classe social. Portanto, é para todos os trabalhadores. E essa situação é favorável não só para o trabalhador individualmente, mas para a sociedade como um todo. A limitação da jornada de trabalho, para quem ganha muito e para quem ganha pouco, tanto faz, porque o que se quer é que as pessoas trabalhem, mas que o trabalho não consuma a vida e não consuma outros valores relevantes para uma sociedade. Haverá juristas que vão dizer que existe na CLT um artigo que diz que um gerente está fora da limitação da jornada de trabalho. Sim, nessa perspectiva a CLT é antiga, velha, porque foi superada pela Constituição de 1988. Foi superada até mesmo pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que é posterior a ela.
ConJur — Agora, um terceiro, como o Ministério Público do Trabalho, interferir no caso de uma pessoa que não vê o seu direito violado não é um exagero?
Jorge Souto Maior — Mas essa pessoa que não vê esse seu direito violado é um problema para o todo social. Muitas coisas existem por falta de compreensão. Vamos imaginar que um trabalhador que ganhe seus R$ 20 mil por mês e diga “eu não preciso de proteção do Estado, eu ganho R$ 20 mil, não quero contribuir para a Previdência, não quero contribuir para o Fundo de Garantia, eu consigo construir a minha casa, prefiro pagar o meu plano de saúde, consigo de tudo, não quero participar do pacto de solidariedade…” fixado na Constituição. Mas meu filho, você não pode não querer, é um pacto institucionalizado. Solidariedade, ali, existe e abarca quem ganha mais para que ele contribua para quem ganha menos. Digamos que um indivíduo, na condição de empregado de uma empresa, queira trabalhar das 6h às 20h. Se essa vontade dele tiver alguma repercussão jurídica válida, ele se integra dentro desse sistema destruindo o próprio sistema. Porque o outro que não se submete a isso não vai ter emprego e ele terá.
ConJur — O que achou da decisão do Supremo de declarar a constitucionalidade da terceirização de todo tipo de atividade?
Jorge Souto Maior — Um dos argumentos utilizados pelo ministro Luís Roberto Barroso é o fato de ele ter conversado com uma pessoa no aeroporto de Guarulhos e ela ter falado para ele que terceirização era muito bom, porque com a terceirização agora ele consegue cinco empregos. Agora pergunto: isso é fundamento técnico? Depois ele diz que terceirização em si não é precarização, que a precarização é a má utilização da terceirização. Ele usou o empirismo a partir de uma entrevista com uma pessoa e recusou o empirismo que existe. O empirismo que existe nesta questão é o maior número de acidentes de trabalho se dá na terceirização, disparado. O maior número de reclamações de trabalhadores que não recebem verbas rescisórias se dá na terceirização, disparado. Há números sobre isso, e esses números ele recusou. Recusou o empirismo, onde de fato cientificamente já está concebido, para demonstrar que ali, na terceirização há de fato precarização de fato, redução de salário.
ConJur — Como a chamada reforma trabalhista tem afetado o Direito e a Justiça do Trabalho?
Jorge Souto Maior — Primeiro recuso a ideia de que tenha havido uma reforma. A nomenclatura reforma obscurece o que de fato foi. Reforma é superar deficiências e encontrar soluções para elas. A lei 13.477 não é nada disso. A lei 13.477, que chamam de reforma, começou lá em 2016 alterando sete artigos da CLT sob o pretexto de que ela estaria velha. De sete artigos passou para cem, em dois meses. Alteraram tudo que quiseram em dois meses. Não teve um estudo prévio, não teve uma preparação, não teve um debate, não teve coisa nenhuma. E essas cem alterações, todas elas postas lá e inseridas pelos conglomerados econômicos, pelos empregadores, que tiveram a condição de fazer o seu lobby.
Então não é uma reforma, é uma lei que atende reivindicações dos conglomerados econômicos. Os interesses econômicos dos empregadores são legítimos, claro. Mas não podem ser juridicamente atendidos sem o respeito às regras democráticas e sem a verificação dos demais interesses, sobretudo os de ordem pública. Então vamos parar de chamar de reforma e vamos dizer que foi uma lei para atender esses interesses.
ConJur — E sobre o mérito da lei?
Jorge Souto Maior — Que mérito? As pessoas elogiam a lei porque ela permite que “o negociado prevaleça sobre o negociado”. É um pressuposto “indemonstrável”, mas vamos supor que isso seja um avanço. O legislador afirma que o negociado prevalecerá nas seguintes situações, e aí relaciona as situações em que no negociado pode prevalecer sobre a lei e de que forma e, depois, as hipóteses em que a lei continua prevalecendo sobre o legislado. Mas se o negociado é melhor que o legislado, por que o legislador precisa dizer as hipóteses em que isso se dá e de modo? Se diz que não prevalece sempre é porque o próprio legislador não acredita nesse pressuposto, gerando insegurança jurídica. Além disso, é uma lei que contraria preceitos básicos de Direitos Humanos, pois, por exemplo, pretende permitir a execução de uma jornada de trabalho de 12 horas e com a possibilidade de extensão dessa jornada em duas horas extras e sem intervalo para refeição, descanso.
ConJur — Os casos nos quais trabalhadores estão sendo condenados a pagar por ações perdidas têm gerado receio de entrar na Justiça?
Jorge Souto Maior — Eu não diria receio, diria medo. Os trabalhadores estão com medo. E parte desse medo tem a ver com o papel assumido pela grande mídia. Essas decisões foram tomadas por juízes que queriam atingir a mídia, e conseguiram, porque a mídia também queria que essas decisões fossem tomadas. Essas decisões não são a maioria da Justiça do Trabalho, mas são as que aparecem — por conta do compromisso da mídia de vender essa “reforma”. O resultado é que as pessoas estão com medo de perder o emprego, entrar com ações. O advogado diz para o cliente “pode acontecer de você ter de pagar R$ 5 mil”, e o sujeito resolve não entrar.
E o curioso é que essa grande mídia vende a diminuição do número de reclamações como um efeito benéfico da reforma. É um efeito de diminuição da cidadania, do sentimento de pertencimento a uma sociedade, que é essa classe trabalhadora, que vê na Justiça do Trabalho uma instituição que funciona. Até isso está sendo retirado dela. Estão diminuindo a condição de cidadania de milhões de pessoas, é isso que está acontecendo. O efeito da reforma é mesmo esse, de temor. De aumento da insegurança e do sofrimento. Isso é algo para ser comemorado?
ConJur — Em 2003, pela primeira vez na história deste país, nós tivemos a assunção de um governo trabalhista. A pergunta é: que influência isso teve na composição dos Tribunais?
Jorge Souto Maior — Tenho estudos sobre isso. Desde 2002 há uma espécie de ampliação da proteção jurídica trabalhista. De fato. Não vincularia isso, necessariamente, ao Partido dos Trabalhadores no governo, embora se possa reconhecer que a existência desse partido tenha favorecido de algum modo. A partir de 2002 já há uma alteração na composição do Tribunal Superior do Trabalho, que vinha sofrendo muitos abalos nos anos 1990, quando também houve muita influência dessa ideia de flexibilização e da retirada de direitos trabalhistas. Lá já começou uma reviravolta grande, especialmente com a nomeação do presidente do TST, o ministro Francisco Fausto. Mas o aumento da estrutura da Justiça do Trabalho se deu, na verdade, por mais paradoxal que pareça, durante a década de 90. O fato é que desde então a Justiça do Trabalho, junto com o Ministério Público do Trabalho, o Ministério do Trabalho e a advocacia trabalhista, vem ampliando a sua confiabilidade e a sua credibilidade, no sentido do cumprimento de seu dever funcional de aplicar os preceitos fixados na Constituição da República de 1988.
Márcio Chaer é diretor da revista Consultor Jurídico e assessor de imprensa.
Fernando Martines é repórter da revista Consultor Jurídico.
Conjur, 24 de setembro de 2018.