Ao fim e ao cabo, toda a história da legislação e da justiça trabalhistas pode ser sintetizada e apreendida em poucas palavras: ‘fascismo’, ‘corporativismo’, ‘populismo’, e e que tais.
Créditos da foto: (Arquivo pessoal)
Que a Justiça do Trabalho não passe de um ente anacrônico, é algo que os mensageiros da Reforma Trabalhista já martelaram à exaustão. Agora, para eles, é simplesmente uma aberração. Não basta mais pregar que a instituição teria sido um fruto nascido podre em algum galho do fascismo europeu. Parece mais apropriado, então, trombetear que a Justiça do Trabalho é hoje uma peculiaridade brasileira, um estranho e frágil sobrevivente na seleção natural da evolução das espécies. Quando instituições congêneres desaparecem em outros países para dar lugar a formas mais “modernas” de (des)regulação das relações de trabalho, eis que no Brasil o ordenamento legal e jurídico do mundo do trabalho permaneceria ancorado em um tempo paquidérmico, um passado que custa a passar.
Segundo reza o pensamento triunfalista e, ao mesmo tempo, fatalista em voga, em que o “centro” do capitalismo orienta necessariamente os passos da “periferia”, insistir nos “erros” do passado é o mesmo que claudicar na corrida global da economia. Globalização e modernização são termos vagos, duvidosos e carregados de juízos de valor, mas muito bem escolhidos no arsenal ideológico do ultraliberalismo contemporâneo e transformados em preceitos normativos. A narrativa da modernização se apresenta sob o signo do novo absoluto e a história perde autoridade sobre o presente. Se o horizonte do “novo capitalismo” é o do tempo curto e do futuro imediato, por que não prescindir do conhecimento histórico?
Afinal, investida de poderes miraculosos, a “reforma trabalhista” já prometia atualizar o presente, abrir-se para o futuro e exorcizar o passado. Ao fim e ao cabo, toda a história da legislação e da justiça trabalhistas pode ser sintetizada e apreendida em poucas palavras: “fascismo”, “corporativismo”, “populismo” e que tais. Mais do que isso é perda de tempo, divagação acadêmica destinada a embalar o sono letárgico da CLT e a prolongar artificialmente o estado mórbido da Justiça do Trabalho. No entanto, mais que nunca, nós – historiadores, economistas, cientistas sociais, juristas – precisamos nos repetir, insistindo em argumentos que seguem na contracorrente do jornalismo fácil, dos pregoeiros das reformas e dos mascates que mercadejam o direito do trabalho.
A Justiça do Trabalho surgiu no mundo há pouco mais de cem anos para, entre outros aspectos, colocar limites à mercantilização do trabalho e compreendê-lo como inseparável da pessoa do trabalhador, tornando-o sujeito de direito, com prerrogativas de representação política e ação coletiva. Relações sociais até então referidas à esfera privada e a contratos individuais passaram a ser objeto de regulação pública, ultrapassando a concepção de que o vínculo entre empregador e empregado se estabelecia por meio da troca voluntária entre sujeitos livres e iguais. O direito do trabalho, aliás, existe precisamente porque trabalhadores e patrões não são iguais no mercado, de modo a impor limites ao poder econômico.
Os então novos instrumentos criados para dar sentido aos tribunais trabalhistas, como representação paritária, poder normativo, direitos individuais e coletivos, jurisdição especial e autônoma no interior do Judiciário, assim como os princípios de conciliação, oralidade, gratuidade e informalidade, que singularizaram a Justiça do Trabalho, já existiam em diversos países antes mesmo de o fascismo emergir como grande força política a partir da década de 1920. Quando instalada no Brasil durante a ditadura de Getúlio Vargas, a Justiça do Trabalho não era uma duplicata da Magistratura del Lavoro de Mussolini, como se tem atribuído, nem a Carta del Lavoro era um código de leis do qual a CLT teria sido um simples decalque, mas uma espécie de carta de princípios. Entre outras diferenças, na Itália fascista foram abolidos os representantes “privados” nas cortes trabalhistas e estas sofreram tamanho controle do Executivo e do Judiciário a ponto de imobilizar seu potencial para conciliar os conflitos e definir salários e novas condições de trabalho. Ou seja, mal funcionou (SILVA, 2010; JOCTEAU, 1978).
Além disso, no processo de circulação, apropriação e ressignificação internacional de ideias e experiências institucionais, a Justiça do Trabalho resultou de uma montagem criativa e seletiva a partir de um conjunto de influências de outros países, entre as quais figuram os sistemas de relações de trabalho da República democrática de Weimar, do trabalhismo australiano e até mesmo do corporativismo de Roosevelt consagrado no New Deal (SILVA, 2016).
Como agora a moda é apontar para os Estados Unidos como a quintessência do reino encantado da primazia do negociado sobre o legislado, tornou-se imperativo inventar novas mitologias sobre o modelo estadunidense de relações de trabalho. “Lá não tem quase direito trabalhista nenhum”, disse há pouco Jair Bolsonaro (SBT BRASIL, 2019). Para que, então, os trabalhadores da maior economia do mundo precisariam de uma Justiça do Trabalho a encarecer a força de trabalho e gerar desemprego, quando tudo pode ser resolvido por meio de negociações coletivas livres e independentes de legislação e tribunais trabalhistas?
Este diagnóstico está errado. Primeiro, é equivocado insistir que, desde o New Deal, as negociações coletivas tornaram-se parte definitiva da paisagem social norte-americana, quando nas últimas décadas contratos abrangendo ramos econômicos e profissionais inteiros não são mais do que relíquias. Isso porque, em segundo lugar, a taxa de sindicalização mal chega a 7% da força de trabalho empregada no setor privado. Terceiro, longe da imagem de absenteísmo legal e estatal no âmbito das relações e do mercado de trabalho, a Suprema Corte daquele país ostenta um longo histórico de serviços prestados contra a atuação dos sindicatos e do movimento operário. Leis de vários estados da federação impedem que trabalhadores do setor público entabulem negociação coletiva, restringem o direito de organização coletiva e, em nome do “direito ao trabalho”, investem contra o exercício do direito de auto-organização, greves, boicotes e piquetes, além de “proteger” o direito individual do trabalhador contra decisões coletivas dos sindicatos, como o pagamento de contribuições sindicais. A liberdade aí existiria só para um dos dois lados.
Em outros termos, o que impera nos Estados Unidos é o reino desencantado da contratação individual, em prejuízo de garantias que, também elas, vão compondo o relicário de direitos legais e contratuais, como estabilidade e proteção aos trabalhadores mais antigos nas empresas, fazendo prevalecer formas “atípicas” de contratação de muito curto prazo, assim como benefícios previdenciários antes negociados em acordos coletivos (LICHTENSTEIN, 2012). São estes, na verdade, os elementos inconfessáveis que os arautos da prevalência do negociado e do desmonte da Justiça do Trabalho tomam para compor o paradigma de suas “reformas”.
Mas o que não dizem é que, nos Estados Unidos, nem os mais exaltados neoliberais cogitam abolir o próprio Ministério do Trabalho. Talvez ignorem também que a legislação trabalhista naquele país se expandiu em volume e escopo para contrabalançar o encolhimento do sistema de negociação coletiva. Desde a década de 1970, ampliou-se a legislação federal em defesa da segurança e saúde ocupacionais do trabalhador, programas de pensão, amparo contra discriminação no mercado de trabalho, aviso prévio por demissões em massa, entre muitas outras garantias estatutárias. Um pouco de estudo sobre o tema já seria suficiente para implodir as arengas de que o trabalhador norte-americano está praticamente destituído de suporte legal e jurídico.
Não cabe no breve espaço deste texto elencar o vasto leque de regras públicas que regem as relações de trabalho naquele país e as instituições que judicializam os conflitos trabalhistas, bastando por ora indicar algumas normas instituídas desde a década de 1930: padrões mínimos de direitos para empregados não contratados por meio de negociação coletiva, assistência na velhice, seguro a inválidos, indenização por demissão sem justa causa, salário mínimo, salário igual para trabalho igual, legislação destinada a trabalhadores volantes no campo e a gestantes e lactantes, limites à jornada de trabalho etc. (STONE, 2006).
Mesmo sem uma Justiça do Trabalho como a brasileira, cortes federais e estaduais julgam controvérsias trabalhistas relacionadas a horas extras, assédio moral e sexual, equiparação salarial, rescisão de contratos e um sem-número de outras questões atinentes aos vínculos de emprego. A pesquisa realizada sobre isso pelo procurador Cássio Casagrande (2017) revela que, ao contrário do que normalmente se supõe, os serviços jurídicos representam altos custos para as empresas, assim como lhes acarreta elevado passivo trabalhista, sem considerar ainda a massiva quantidade de ações e demandantes na esfera judicial.
Contudo, os reformistas de plantão nunca compram e vendem o enxoval inteiro que inspira sua imaginação. Em sua costumeira autoconfiança, estabelecem contrastes por livre associação e justaposição de ideias, sem correspondência com as realidades que invocam em suas fantasias. Ciosos de tanta modernidade, o que fazem nada mais é do que vestir com roupagem nova um velho corpo de princípios liberais que remontam ao século XIX para fazer prevalecer o “direito ao trabalho” individual sobre o direito do trabalho em termos coletivos. O que se objetiva é colocar ambos sob a alçada do Direito Civil e da chamada “justiça comum”, tal como foi moeda corrente antes do surgimento do Direito Social e da Justiça do Trabalho, criações “modernas” em uma ordem pautada pela concepção mercantil e patrimonial do trabalho (TEIXEIRA, 2017: 29-33).
Assim é que os direitos se transformam, hoje como ontem, em simples commodity quando os Estados-nação reduzem e uniformizam os padrões e “custos” de proteção ao trabalhador, para competir com outros países e atrair investimentos, fixando preços homogêneos para a força de trabalho no mercado internacional. E, para tranquilizar o “dinheiro organizado” (PACKER, 2014: 9), nada melhor que vender o sonho do trabalho arrematado em pregão e um mundo de competitividade sem conflitos. Nesse admirável mundo novo de fluxos e fluidez, sem lugar para pontos fixos, legislação e Justiça do Trabalho para quê?
Bibliografia:
CASAGRANDE, Cássio. A Reforma Trabalhista e o “sonho americano”, jun. 2017, em https://www.trt13.jus.br/informe-se/noticias/2017/06/a-reforma-trabalhista-e-o-201csonho-americano201d-1. Acesso em 17/01/2019.
JOCTEAU, Gian Carlo. La magistratura e i conflitti di lavoro durante il fascismo, 1926-1934. Milão: Feltrinelli Editore, 1978.
LICHTENSTEIN, Nelson e SHERMER, Elizabeth Tandy (orgs.). The Right and Labor in America. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2012.
PACKER, George. Desagregação: por dentro de uma nova América. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
SBT BRASIL. Jair Bolsonaro concede ao SBT a primeira entrevista após a posse, 3 jan. 2019, em https://m.sbt.com.br/jornalismo/sbtbrasil/noticias/119447/exclusivo-jair-bolsonaro-concede-ao-sbt-a-primeira-entrevista-apos-a-pose.html. Acesso em 17/01/2019.
SILVA Fernando T. da. “The Brazilian and Italian Labor Courts: comparative notes”, International Review of Social History, Amsterdã, nº 55, 2010.
SILVA Fernando T. da. Trabalhadores no tribunal: conflitos e Justiça do Trabalho em São Paulo no contexto do golpe de 1964. São Paulo: Alameda, 2016.
STONE, Katherine. “Rethinking Labour Law: Employment Protection for Boundariyless Workers”, in DAVIDOV, Guy e LANGILLE, Brian (orgs.). Boundaries and Frontiers of Labour Law. Oxford e Portland: Hart Publishing, 2006.
TEIXEIRA, Marilane O. et al (orgs.). Contribuição crítica à reforma trabalhista. Campinas: UNICAMP/CESIT, 2017.
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Fernando Teixeira da Silva é professor do Departamento de História da Unicamp e, entre outras publicações, autor do livro Trabalhadores no tribunal: conflitos e Justiça do Trabalho em São Paulo no contexto do golpe de 1964 (Alameda, 2016)
Carta Maior, 23 de janeiro de 2019