Durante uma das crises econômicas mais longas do país, muitas mulheres passaram a trabalhar mais para compensar o desemprego do marido e dos filhos; vários maridos sem trabalho, entretanto, resistem a aceitar domésticas.
De pé no meio da cozinha, Alessandra aperta os olhos para enxergar as letras pequenas. Ela segura o papel com as duas mãos e treme um pouco.
Depois que Alexandre perdeu o emprego, Alessandra passou a sustentar a casa
Foto: Fernando Quixote/BBC / BBC News Brasil
“Insônia, cefaleia, ideias suicidas…Nossa, você toma algo para ansiedade e pode ter ideias suicidas!”, ri, meio sem jeito.
Caixas com tarjas vermelhas e pretas estão enfileiradas sobre o micro-ondas. É dentro de uma delas que Alessandra guarda a bula.
“Mas você sabe, esse é o melhor ansiolítico que existe!”
Apesar dos efeitos colaterais, são os remédios que ajudam Alessandra, 45, a dormir, acordar e respirar durante crises de asma, bronquite e síndrome do pânico. Essas doenças apareceram há alguns anos, quando sua vida começou a mudar.
Em 2014, o marido de Alessandra deixou um emprego como gerente de logística e não conseguiu arrumar outro. Desde então, é o salário dela como agente de viagens que sustenta a casa, onde também mora uma de suas filhas, de 18 anos e desempregada. Responsável pelas contas e pela limpeza, sem carteira assinada, dinheiro no banco ou gastos que ainda possa cortar, Alessandra está cansada e doente. E é assim que ela e sua família chegam a 2019.
A recente recessão vivida pelo Brasil foi a maior desde os anos 1980, quando o Comitê de Datação de Ciclos Econômicos, da Fundação Getulio Vargas (FGV), começou a medir as crises brasileiras. Em 11 trimestres, entre 2014 e 2016, o PIB do país acumulou uma queda de 8,6%. Nesse período, o desemprego chegou a atingir 14,2 milhões de pessoas e a renda per capita caiu 9,4%, o segundo pior resultado do século. Durante uma das crises mais longas de nossa história, muitas famílias passaram por transformações semelhantes às experimentadas por Alessandra.
Uma delas merece destaque, por influenciar com força as dinâmicas familiares: o protagonismo das esposas, grupo que não tinha salário ou cujo salário era secundário no sustento da casa. Na maioria dos casos, elas são as esposas ou companheiras, enquanto os maridos se identificam como “chefes de família”.
Um levantamento feito para a BBC News Brasil pelo professor Marcelo Neri, diretor do centro de políticas sociais da FGV, com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), indica que as esposas se saíram melhor do que os chefes de família durante a recessão. Elas tiveram aumentos expressivos de renda, horas trabalhadas e participação no mercado de trabalho. Nesta reportagem, o termo será usado no feminino já que 72,5% dos que ocupam esse papel são mulheres, de acordo com a Pnad de 2017. É importante ressaltar que muitas brasileiras também exercem a função de chefes em suas casas.
Os dados da Pnad mostram que, entre o segundo trimestre de 2015 e o segundo trimestre 2018, a renda das mulheres do casal cresceu 17,9% enquanto que a dos principais responsáveis pelo domicílio (cuja maioria é de homens) caiu 10,3%. O crescimento da renda do grupo das mulheres cônjuges também ultrapassou o dos jovens, os que mais sofreram com o desemprego – nesse período, a renda dos que se identificavam como filhos encolheu 9,6%.
O bom desempenho, no entanto, não é motivo de comemoração: em sua maioria, os rendimentos das mulheres não melhoraram a situação da família, mas apenas impediram que seus membros ficassem ainda mais pobres.
“A trabalhadora adicional entra no mercado para amortecer a queda de renda da família, como um colchão”, diz Neri.
“Ou seja: há um ganho individual, mas uma perda familiar.”
Na cozinha, enquanto se prepara para sair, Alessandra coloca potes de plástico com seu almoço e lanche da tarde dentro de uma bolsa de tecido. Depois de empilhá-los, equilibra uma banana sobre eles.
“Está na hora. Vamos?”
O relógio marca 6h15.
O retrocesso
As paredes brancas da casa estão descascadas, sem pintura há algum tempo. O varal no quintal está quebrado. Ao tirar o carro da garagem, Alexandre diz que vai tentar consertá-lo mais tarde.
Alessandra senta no banco do passageiro para o trajeto de uma hora até o trabalho, no centro de São Paulo. Ela fala sobre o que mudou nos últimos anos.
“Tem semana em que a gente não tem grana. Não tem. Se eu te falar que tem dez reais na carteira é mentira”, ela diz, olhando pela janela.
“A gente nunca foi extremamente consumista…Mas começamos a ir ao shopping já almoçados, para não gastar, e a pesquisar muito só para comprar um par de tênis. Vendemos carro, cortamos telefone fixo, TV…É apertado.”
O desemprego e a perda do poder de compra que ele traz geram sofrimento, diz a professora da Unicamp e presidente da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho Angela Araújo. Isso porque, ao longo do tempo, tais condições obrigam as famílias a repensarem até as pequenas escolhas: optar por roupas mais baratas e às vezes diminuir a quantidade de comida.
“A classe média e média baixa sofreram muito com a crise. As famílias não conseguiram manter o padrão de vida, que se tornou descendente. E a tendência ainda é essa: de queda.”
Alexandre, 49, trabalhava em distribuidoras de alimento há 20 anos quando, em 2014, depois de desentendimentos com colegas, pediu demissão. Ele tinha experiência, dinheiro guardado e, antes de procurar uma vaga, decidiu tirar alguns meses de descanso. Ao começar a enviar currículos, notou algo diferente. Os amigos também estavam desempregados, sua antiga empresa havia fechado e nas entrevistas, em vez dos dez candidatos habituais, 40 disputavam os cargos mais altos.
“Foi quando eu percebi que o mercado estava sumindo”, ele diz, dando de ombros.
“É muito estressante você não ter grana para fazer o que fazia”, Alessandra interrompe.
“A gente saia todo final de semana, né, Alê?”, ela vira para o marido enquanto o trânsito para na avenida. “A gente dava uma volta no sábado ou no domingo, ia comer fora. Agora deixamos de ter lazer…”
Na agência de viagens, onde ganha pouco mais de R$ 4 mil por mês, Alessandra manteve sua função. Seu salário, que então ajudava a pagar as contas, tornou-se o único da casa.
Contratam-se mulheres
Em períodos de crise, os empregadores preferem contratar ou manter mulheres em suas empresas, dizem professores entrevistados pela BBC News Brasil. Apesar de a taxa de desemprego ser tradicionalmente maior entre elas, durante recessões os empresários são guiados pela necessidade: mulheres têm salários menores do que homens e, em geral, aceitam condições de trabalho menos garantidas.
Em 2017, de acordo com a Pnad, os homens ganhavam, em média, 29,7% a mais do que as mulheres.
“Elas têm uma formação melhor, mais escolaridade, mas salários menores. Ganhar menos ou aceitar emprego em condições piores, sem carteira, é uma característica do emprego feminino que atrai as empresas. As empresas querem reduzir custos, se livrar das leis trabalhistas. É uma questão de sobrevivência”, diz a professora do Departamento de Economia da PUC Anita Kon.
As mudanças estruturais no mercado brasileiro foram fundamentais para permitir que mulheres como Alessandra se tornassem provedoras durante a crise, acrescenta a professora Angela Araújo.
Uma dessas transformações foi o crescimento, na última década, do setor de serviços de educação e saúde, onde elas são maioria. Desde o começo dos anos 2010, esse tipo de ocupação ultrapassou os serviços domésticos como a função que mais emprega brasileiras.
Por trás da expansão dos serviços, explicam os entrevistados, está a multiplicação de sistemas privados de educação e saúde – faculdades e clínicas particulares -, muitos deles contratantes de empresas terceirizadas. Por causa disso, os professores alertam que boa parte dessas vagas oferece condições precárias de trabalho.
Para a economista e professora da UFRJ Lena Lavinas, a flexibilização, impulsionada pela reforma trabalhista, também pode ter ajudado a entrada ou permanência das mulheres em seus cargos. Com a possibilidade de negociação direta entre patrão e funcionário e de contratos de trabalho intermitente com salários mais baixos, por exemplo, a resistência à contratação de mulheres – por receio de que engravidem ou faltem para se dedicar aos filhos – é menor.
Alessandra recebe como Pessoa Jurídica desde 2016. Ela pediu para ser mandada embora porque não conseguia mais pagar o colégio da filha caçula e queria ganhar sua rescisão para quitar as mensalidades. Sua chefe sugeriu que ficasse, mas deixasse de ter a carteira assinada. Hoje Alessandra recebe o salário sem descontos e passou a trabalhar mais – ligações e mensagens fora do horário comercial são comuns.
Se setores marcados pela presença feminina cresceram na última década, o mesmo não se pode dizer dos “masculinos”. A construção civil foi a campeã em demissões em 2017. Foram 104 mil vagas fechadas, como mostram dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados). A indústria de transformação demitiu 20 mil pessoas.
Alexandre diz que já em 2014 percebia que seu setor não ia bem.
“Às vezes estourava em vendas e daqui a pouco não vendia nada. Antes de sair, vi que as empresas diziam que não dava para pagar a distribuição.”
Enquanto Alexandre dirige, Alessandra conta sobre quando deixou o emprego para acompanhar o marido em uma transferência. Então, seu salário era apenas um complemento.
“Uma vez fiquei fora do mercado por três meses e só depois comecei a procurar emprego. Quando a gente foi para o interior, fiquei parada mais de um ano”, ela diz.
“Falei pra ela ‘se quiser, trabalha, se não quiser, fica em casa’. Quando ela ficou desempregada, era diferente. Não era tão ruim…”, Alexandre continua a explicação, olhando pelo retrovisor.
As trajetórias profissionais das mulheres costumam ter um movimento de entrada e saída do mercado para se adaptar ao itinerário da família, explica a professora do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora Ana Claudia Moreira Cardoso. E seria por isso que muitas não conseguem subir na hierarquia profissional e permanecem auxiliares no sustento da casa.
“Essas entradas e saídas também são uma maneira de manter a desigualdade, porque você não está dando as mesmas chances para os dois sexos. Elas perdem a oportunidade de construir uma carreira”, diz Cardoso, que estudou a vivência dos trabalhadores e os processos de negociação coletiva em seu doutorado.
Além dela, outros professores entrevistados pela BBC Brasil defendem que, apesar de consistente e representativa de uma luta por autonomia, a entrada das mulheres na força de trabalho aconteceu pela porta lateral.