Uma nota reveladora. Essa é a conclusão a que se pode chegar ao analisar um documento sobre financiamento à exportação de serviços pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), assinado pelo presidente da entidade, Gustavo Montezano.
Por Osvaldo Bertolino
O presidente do banco diz que as operações de financiamento à exportação de serviços, “tema que vem ganhando repercussão em publicações”, precisam ser esclarecidas porque estão “em linha com o conjunto de ações em curso” com o objetivo de “tomar cada vez mais transparente perante a sociedade brasileira”.
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O que isso quer dizer exatamente não ficou claro nem na nota, nem no pronunciamento de Gustavo Montezano sobre o assunto. “Diante da complexidade dos dados, eles são aqui explicados na forma de um resumo didático das operações de financiamento à exportação de serviços por empresas brasileiras com dados de 1998 até junho de 2019, sendo que, em 2017, os desembolsos foram interrompidos”, diz o texto.
Os dados mostram que, no período, “foram liberados US$ 10,5 bilhões em desembolsos para empreendimentos em 15 países, sendo que US$ 10,3 bilhões retornaram em pagamentos do valor principal da dívida e dos juros”. “Do total de pagamentos, 89% foram liberados para empreendimentos em seis países. São eles, em ordem decrescente de valores: Angola (US$ 3,273 bilhões), Argentina (US$ 2,006 bilhões), Venezuela (US$ 1,507 bilhão), República Dominicana (US$ 1,215 bilhão), Equador (US$ 685 milhões) e Cuba (US$ 656 milhões)”, prossegue.
Diz ainda que “entre as empresas que exportaram os serviços, 98% do valor total foi destinado a obras de cinco delas: Odebrecht (76% do total), Andrade Gutierrez (14%), Queiroz Galvão (4%), Camargo Corrêa (2%) e OAS (2%)”. “Ao todo, 148 operações foram realizadas, com prazo médio de 11 anos e dois meses para pagamento dos financiamentos. O maior prazo foi concedido pelo Conselho de Ministros da Câmara de Comércio Exterior (Camex) para o projeto do Porto de Mariel, em Cuba, que será pago em 25 anos”.
Autoridades legais
Cuba foi também, segundo o presidente do BNDES, o único país “que incorreu em 100% do risco soberano de um país, por aceitar como mitigador de risco de crédito uma conta corrente”. Se isso é bom ou ruim, a nota não esclarece. Mas garante que, “embora o programa de financiamento à exportação de serviços de engenharia tenha sido criado em 1998, 88% do total de US$ 10,5 bilhões em desembolsos ocorreram no período compreendido entre 2007 e 2015”.
Também sem explicar as conjunturas envolvidas, por óbvio, o documento afirma que, “a partir de janeiro de 2018, surgiram inadimplementos nos pagamentos de Venezuela (US$ 374 milhões), Moçambique (US$ 118 milhões) e Cuba (US$ 62 milhões), em um valor total de US$ 554 milhões até 30 de junho de 2019”.
O tom dúbio é usado mais uma vez para explicar que, “em 2016, quando começaram as controvérsias envolvendo empresas brasileiras exportadoras de serviços de engenharia, o BNDES, em acordo com o Ministério Público Federal (MPF), passou a exigir das empresas a assinatura de um Termo de Compliance (Conformidade), com rígidas regras de governança, como condição para liberação de recursos”. As “controvérsias”, como se sabe, foram se limitam a alterar o papel precípuo do BNDES e utilizar seus recursos para o “ajuste fiscal” de Paulo Guedes.
A própria nota afirma que, após essa medida, o BNDES reteve US$ 11 bilhões que estavam previstos para serem desembolsados, referentes a 47 operações ativas”. “No momento, as operações de financiamento à exportação de serviços feitas pelo BNDES estão sob análise de diversas autoridades legais. O BNDES ativamente colabora com apurações no Tribunal de Contas da União (TCU), na Controladoria-Geral da União (CGU) e na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) em curso na Câmara dos Deputados”, afirma.
Princípios do banco
O que está sendo analisado, não dito. “O BNDES ratifica seu firme propósito de cooperar com os órgãos competentes e abrir todas as informações questionadas pela sociedade brasileira. A divulgação de informações concretas como estas colabora com um debate mais produtivo do papel da instituição no país”, afirma a nota, sem dar maiores detalhes, a não ser platitudes como a de que “a transparência é um princípio fundamental à gestão pública do país e um norte para o BNDES recuperar sua credibilidade”.
E conclui afirmando que “as lições aprendidas com o passado tornam o banco mais eficiente para os cidadãos brasileiros e colaboram para sua ação em favor de negócios que levem ao desenvolvimento”. O passado do BNDES é longo, mas é óbvio que a nota refere-se ao período dos governos dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff — que, a rigor, aplicou os princípios pelos quais o banco foi criado no segundo do governo do presidente Getúlio Vargas.
Foi quando o Brasil entrou firme em sua fase moderna com o Estado dando prioridade à acumulação de capital físico (máquinas, equipamentos e instalações industriais) — política adotada sobretudo pela “era Vargas” basicamente por meio do BNDES (criado em 1952), da Telebrás, da Eletrobrás, da Siderbrás, da Nuclebrás e da Petrobrás.
As “lições” de Montezano não vêm daí. Elas são mera repetição das lições do Programa Nacional de Desestatização criado pelo programa neoliberal do governo Fernando Collor de Mello e aplicado nos governos Fernando Henrique Cardoso (FHC), quando o BNDES se transformou em mero comitê gestor e financiador das privatizações.
Carlos Lessa
Montezano, falando em um evento para “investidores” em Nova York sobre o programa de aceleração das privatizações do governo Bolsonaro, disse que o BNDES não espera concluir uma privatização ainda este ano, mas as vendas de ativos devem acelerar em 2020. Como exemplo de ativo que deve ser privatizado em breve, ele mencionou os Correios. “Se não for privatizado em breve, pode ser tarde demais para vendê-lo”, disse ele segundo a agência Reuters.
Ou seja: é a negação do BNDES de Getúlio Vargas, Lula e Dilma. Quando Carlos Lessa tomou posse na presidência do bonca no início do primeiro governo Lula, ele fez uma dura crítica às gestões privatistas. “A fantasia neoliberal não conduz a lugar nenhum”, afirmou. “O norte para o banco está claramente sinalizado pela mudança de projeto nacional”, complementou.
Uma das suas iniciativas nunca perdoada pela ideologia de Montezano foi o apoio à integração física da América do Sul. Pelo projeto, o BNDES daria financiamento a esses países com uma condição: eles deveriam contratar empresas brasileiras para realizar obras de infraestrutura em seus territórios, como estradas, hidrelétricas e gasodutos. O modelo foi expandido para outras geografias, o motivo da fantasiosa “caixa preta” que se transformou em fetiche bolsonarista
Vermelho, 18 de setembro de 2019