O Brasil como ilha da fantasia de Bolsonaro e Paulo Guedes

10 de outubro de 2019

As principais avaliações sobre as causas e os efeitos da crise global contrastam com o programa do governo do presidente Jair Bolsonaro. A mais contundente é a da diretora-geral do Fundo Monetário Internacional, Kristalina Georgieva.

Por Osvaldo Bertolino

 

 

 

 

 

 

Fazer a lição de casa para atrair investidor. Esse mantra é o primeiro mandamento da cartilha neoliberal, uma espécie de abra-te-sésamo para os que viriam salvar o Brasil de todas as suas mazelas. Algo que lembra Lima Barreto. “Nós, os brasileiros, somos como Robinsons — estamos sempre à espera do navio que nos venha buscar da ilha a que um náufrago nos atirou”, escreveu ele. Esse ramerrame que frequentava dez em cada dez diagnósticos da crise no período neoliberal dos anos 1990 está de volta, na mesma proporção.

Os discípulos da Escola de Chicago, a catedral do neoliberalismo que tem como mestre no Brasil o ministro da Economia Paulo Guedes, dizem que o país experimenta um momento quase único, com perspectiva de estabilidade econômica no médio prazo. Ele fala, evidentemente, do rompimento com o paradigma desenvolvimentista e a adoção das “reformas” neoliberais e as privatizações.

O que está sendo estabilizado exatamente, eles não dizem claramente. Tampouco explicam esse quase ineditismo do momento, uma mera repetição da explícita metafísica das suas análises. Mas é fácil identificá-los. São, basicamente, duas searas que estão sendo preparadas para o tal investidor — o mercado dos juros, que nominalmente tendem a se estabilizar entre 5% e 6% nos próximos dois ou três anos, e o potencial econômico do país.

 

João da Silva

No primeiro caso, trata-se da drenagem de recursos orçamentários via circuito financeiro e, no segundo, das privatizações e da desnacionalização da economia. Fala-se muito do primeiro — com inteira razão, diga-se de passagem, por ser uma pilhagem escancarada — e pouco do segundo. Ambos são graves, mas o segundo acaba determinando o primeiro.

O detalhe é que os lucros das megaempresas gerados nos quatro cantos do planeta são carreados para um determinado país-sede. E isso faz balanças de pagamento penderem para um lado ou para o outro, levando consigo expectativas, juros, entradas e saídas de capital, pontos a mais ou a menos no crescimento econômico, acréscimos ou decréscimos na renda per capita. O João da Silva e John Smith não são beneficiados de modo igual; o primeiro paga a conta do segundo.

Ao fazer a lição de casa determinada pelo mestre da Escola de Chicago, o governo do presidente Jair Bolsonaro joga exatamente por essas regras. Como disse Paulo Guedes, o Brasil vai continuar em uma trajetória de recuperação dos “fundamentos macroeconômicos” e “gerar atratividade continuada para ativos brasileiros”. Além da síndrome de Robinsons, de que falou Lima Barreto, o ministro recupera a ideia imaginária de que foram os índios que chamaram Pedro Álvares Cabral para descobrir o Brasil.

 

Mundo da bufunfa

O lucro é certo. Conforme divulgou o Banco Central, a Dívida Bruta do Governo Geral, em trajetória ascendente, fechou agosto aos R$ 5,618 trilhões, o que representa 79,8% do Produto Interno Bruto (PIB). Já o Ministério da Economia anunciou que as privatizações e vendas de ativos bateram a meta de US$ 20 bilhões em 2019, alcançando US$ 23,5 bilhões, montante equivalente a R$ 96,2 bilhões.

Para a conta, o governo considerou R$ 78,6 bilhões em privatizações e desinvestimentos, concessões de R$ 5,7 bilhões e vendas de ativos naturais de R$ 11,9 bilhões. Foram também abarcadas três operações da Eletrobras realizadas em 2018, mas integralizadas em 2019, envolvendo Amazonas Energia, CEAL e Uirapuru Transmissora.

Com esses vistosos resultados da cartilha do regente da Escola de Chicago, não há como em falar em pessimismo no mundo da bufunfa. Pode-se dizer que, nesse ritmo, para eles o vaticínio de Stephen Zweig de que “o Brasil é o país do futuro” está se cumprindo rapidamente. Afinal, avançam céleres as “reformas” que vão garantir muito mais lucros. A turma de Sérgio Moro e Jair Bolsonaro está se encarregando de combater a “corrupção” para acabar com a falta de liberdade econômica e o enquadrar as “instituições” numa legislação à margem da Constituição.

Ao “Chicago boy” Paulo Guedes cabe a função de verbalizar a patranha com a sua retórica de uma palavra só — “economizar”. A “reforma” da Previdência Social “economiza” tanto. As privatizações, outros tantos. O congelamento do salário-mínimo, mais outro tanto. É um novilíngua para tentar reinventar os fatos. A questão é: “economiza” de onde, para que e para quem?

 

Liberdade de expressão

Nesse delírio teorizante, o que não falta é mandracaria. Como a presunção é o traço mais evidente do ministro e seus discípulos, eles apelam para a diagramação muitas vezes ininteligíveis para o povo, forjando um cenário com muitos cronogramas, organogramas e topogramas que servem somente à prolixia. Pode-se dizer que são nominalistas. Se a realidade — onde coisas e fenômenos estão há muito nominados — não corresponde às análises, muda-se o nome das coisas e fenômenos.

Para eles, o desemprego em massa não decorre de uma receita econômica. A desigualdade social não é sinônimo de pobreza. Não há investimentos, públicos e privados, pífios. E pobreza num país em que as riquezas não são distribuídas não leva à violência. Enfim, os problemas sociais não são fenômenos da realidade — eles só existem em quem insiste na equalização dos históricos desnivelamentos econômico e cultural. E por isso são chamados de corruptos, radicais, atrasados, baderneiros e de outros nomes da pululante adjetivação neoliberal.

De acordo com as melhores regras do que se considera ser a ciência política e mesmo econômica, segundo a sabedoria acumulada nas academias e até pelas experiências do passado, tais e tais causas deveriam gerar tais e tais efeitos; desta ou daquela situação teria de resultar esta ou aquela consequência. Parece até que no governo Bolsonaro criou-se uma espécie de “Departamento de Gerência de Falsidades e Mentiras”. Não há espaço — nem na mídia — para qualquer discussão que questione a macroeconomia da Escola de Chicago. Não há liberdade de expressão e de manifestação de pensamento.

Seria importante saber, por, exemplo, como anda aquilo que a economista Maria da Conceição Tavares chama de “estrangulamento externo”, decorrente de uma dívida pública fortemente marcada por um perfil de curto prazo e bastante dolarizada. O que se sabe, pelas bocas de Paulo Guedes e do vice-presidente da República Hamilton Mourão, é que o governo pretende “descarimbar” o Orçamento da União, acabando com as verbas vinculas aos investimentos sociais e em infraestrutura para que ele tenha o carimbo único do circuito financeiro, o mercado de juros públicos.

Terra plana

São, pode-se dizer, “desacarimbadores malucos”, levando-se em consideração a natureza da operação e as urgências do país. Mas é o que consta do programa de governo, um autêntico cardápio de avestruz para o povo. Chega a ser impressionante como os seus argumentos são rudimentares. E autoritários. Diante deles, não há meio-termo: ou fica-se rouco tentando dialogar ou recorre-se à artimanha de Galileu na corte romana.

Para escapar da fogueira, ele esconjurou o que acreditava e declarou aos juízes da Inquisição que o Sol girava em torno da Terra. E foi assim que ele manteve-se vivo. E a Terra continuou a sua trajetória em torno do Sol. No Brasil, a Terra plana da ideologia de Paulo Guedes não é capaz de apresentar pelo menos um (unzinho) argumento lógico capaz de explicá-la como benéfica para o país. O povo brasileiro que não tem acesso aos benefícios da ciranda financeira internacional é tão beneficiado por essa política quanto alguém que mora na Sibéria.

Os resultados de tudo isso aparecem por todos os lados. Um deles é do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que acaba de manter a expectativa de crescimento da economia brasileira em 0,8% para 2019, mas reduziu a projeção para 2020, de 2,5% para 2,1%. O diretor de Macroeconomia do Ipea, José Ronaldo de Souza Júnior, avaliou que a demora na recuperação da confiança da indústria e a piora no cenário internacional foram os motivos para a revisão da expectativa.

 

Cesta básica

A confiança é uma abstração; ela depende de múltiplos fatores e certamente não será influenciada por meras promessas de que basta fazer “reformas” e privatizar que a bonança está garantida. Ela depende mais de resultados concretos. E ninguém, aparentemente, está comprando os bilhetes premiados de Paulo Guedes. Já o cenário internacional, vai de mal a pior, conforme mostra um recente relatório do Banco Mundial, com as cadeias globais de valor travadas.

A ação dos bancos centrais para mitigar a crise econômica real, especialmente o Federal Reserve (Fed) norte-americano e o Banco Central Europeu (BCE), chegou ao limite. A redução da taxa básica de juro tem se mostrado inócua. E a economia real mostra resultados como o do Equador, que, com a adoção da receita do FMI, mergulhou no caos. E o da Argentina, que abandonou um item da cartilha de Chicago ao adotar medidas de controle cambial, num esforço para domar a especulação e impedir uma espiral de crise da dívida.

O Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec) informou que 35,4% da população argentina, ou 15,9 milhões de pessoas, estão vivendo abaixo da linha de pobreza. Em 1974, esse porcentual era de apenas 4%. Segundo o jornal Ámbito Financiero, dados do Observatório da Dívida Social da Universidade Católica da Argentina indicam que quase 47 das crianças do país vivem em famílias pobres. Além disso, o Indec informou que em metade das residências argentinas a renda não alcançou, no segundo trimestre do ano, o suficiente para comprar uma cesta básica.

 

Mercado de ações

Na Europa, até a Alemanha — o gigante local — fraqueja. A produção industrial aumentou 0,3% em agosto sobre o mês anterior, mas depois de duas quedas mensais consecutivas. A controvertida saída do Reino Unido da União Europeia e a guerra comercial e tecnológica do governo norte-americano de Donald Trump contra a China estão prejudicando o mercado de trabalho da Alemanha, que tem sido a base de um ciclo de crescimento impulsionado pelo consumo, à medida que as exportações diminuem.

A agência Bloomberg mostra que o crescimento empresarial da zona do euro estagnou em setembro, uma vez que a contração na atividade industrial está cada vez mais afetando o setor de serviços, de acordo com a pesquisa Índice de Gerentes de Compras (PMI, na sigla em inglês). “A economia da zona do euro parou em setembro, com as pesquisas de PMI pintando o cenário mais obscuro desde que o atual período de expansão começou em meados de 2013”, disse Chris Williamson, economista-chefe do IHS Markit, renomada consultoria europeia.

Para agravar a situação, os Estados Unidos vão impor tarifas de 10% sobre aeronaves e 25% sobre outros produtos industriais e agrícolas da União Europeia como parte de um prêmio de penalidade da Organização Mundial do Comércio (OMC) em um caso de subsídio de longo prazo para o setor aéreo. As tarifas devem entrar em vigor em 15 de outubro. Há também sinais de desaceleração nos Estados Unidos. O mercado de ações daquele país já começa a sentir os efeitos da desaceleração da economia global.

 

Grandes fraturas

Chama a atenção, na avaliação desse cenário, o diagnóstico da recém-empossada diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva, conforme relato do jornal português Público. De acordo com o que ela adiantou em relação a assembleia geral da instituição na próxima semana, “a economia mundial está agora numa desaceleração sincronizada”. “Prevemos um crescimento mais fraco em 90% do mundo. Isto significa que, neste ano, o crescimento vai cair para o nível mais baixo desde o início da década”, afirmou ela.

A última previsão do FMI para 2019, divulgada em julho, apontou um crescimento mundial de 3,2%, a mais baixa desde a grande recessão de 2009, o mais fraco desde a última recessão global até 2018. Sem revelar os novos números para 2019 e 2020, Kristalina Georgieva avisou que que o FMI “vai rever em baixa”, de novo, aquelas previsões.

Ao se aproximar dos 3% para 2019 – limite tido como a linha vermelha por muitos economistas –, esse patamar acende o sinal amarelo. Neste século, o crescimento mundial caiu para menos de 3% em 2001 e 2002, dois anos de forte desaceleração, e situou-se na linha vermelha em 2008, no ano do início da crise financeira.

Kristalina Georgieva avaliou a guerra comercial e tecnológica movido pelo governo Trump contra a China como “uma das grandes fraturas”. Segundo ela, existem um conjunto “de fendas” que “poderá levar a mudanças que vão durar uma geração”, incluindo o efeito negativo sobre as cadeias de fornecimento mundiais ligadas à globalização e a “um novo ‘Muro de Berlim’ digital forçando os países a escolher entre sistemas tecnológicos”.

 

Escala mundial

A diretora-geral do FMI também calculou em US$ 700 bilhões o volume da perda para 2020, o equivalente a 0,8% do Produto mundial. “A chave é melhorar o sistema (de comércio internacional), e não abandoná-lo”, afirmou, criticando as ações de Washington, que já impôs taxas alfandegárias mais elevadas a US$ 550 bilhões de importações provenientes da China, enquanto Pequim respondeu com novas taxas sobre US$ 185 bilhões de dólares de importações dos Estados Unidos.

A assembleia geral do FMI vai acontecer precisamente na semana em que os Estados Unidos vão aplicar mais taxas aduaneiras sobre quase a metade das importações da China e provocar uma escalada na guerra comercial com a União Europeia. A proposta da diretora-geral do FMI é totalmente oposta ao que vem fazendo o governo brasileiro.

Segundo o jornal português, Kristalina Georgieva, ao avaliar esse quadro, disse que o FMI volta a apelar a que os governos, que disponham de margem orçamentárias, intervenham nas economias dos seus países. Para ela, “a política orçamentária desempenha um papel central” nesse cenário de agravamento da crise. “Agora, é a hora dos países com espaço nos seus orçamentos avançarem – ou estejam prontos para tal – com o seu poder de fogo orçamentário”, afirmou.

Kristalina Georgieva entende que “as taxas de juro baixas (em virtude da política monetária expansionista) podem dar aos governantes dinheiro adicional para gastar”. Recorde-se que a Alemanha e a Holanda, com excedentes orçamentais e externos, se financiam atualmente com taxas negativas em todos os prazos do seu estoque de dívida pública, informa o Público.

Ela foi ainda mais longe. No caso de uma piora maior do que o esperado, “pode vir a ser necessária uma resposta de política orçamentária coordenada” à escala mundial. “Ainda não estamos nessa situação. Contudo, a nossa investigação mostra que mudanças na despesa pública são mais eficazes e têm um efeito multiplicador quando os países agem em conjunto”, concluiu.

 

Vermelho, 10 de outubro de 2019