OPINIÃO
Aprendi com o velho Elias Díaz, jurista espanhol: quem colocaria em dúvida que, no Estado Democrático, a legalidade só poderia ser uma legalidade constitucional? Mas, como tudo por aqui no Brasil, há controvérsias. Muitas.
Pedro Serrano e eu escrevemos um texto (ver aqui) denunciando que o juiz Sergio Moro, ao fazer a transição de governo junto com Bolsonaro, aceitar o cargo e montar seu gabinete, infringiu a Constituição, a Loman e o Código de Ética dos juízes. Dias depois, o CNJ abriu procedimento contra Moro, face à representação (ou mais de uma) que lá ingressou. Ou seja, nossa denuncia tinha fumus boni juris.
Para lembrar: em entrevista, Moro já havia dito por que optara por não se exonerar antes de assumir o Ministério da Justiça (razões de salário, segurança e proteção da família). Porém, face ao procedimento aberto pelo CNJ, Moro teve que mudar os planos. No dia 15, Moro pediu exoneração, contada a partir de 19 de novembro. Três deputados ingressaram com pedido de cautelar (aqui), para impedi-lo de se exonerar antes de resolver esta e outras pendências administrativas que contra ele tramitam.
A cautelar procede. Se Moro pode se exonerar depois do cometimento da própria infração que causou o último procedimento, abrirá um perigoso precedente, além de tornar inócua a proibição de os juízes exercerem atividade política. Qual é o busílis? Simples: Um funcionário público comete uma infração (grave) e, como a lei somente impede a aposentadoria ou exoneração se estiver respondendo a processo (PAD), bastará que, aberto o procedimento que poderá levar à posterior abertura do PAD, peça exoneração (ou aposentadoria) para que tudo se extinga. É a lei levando o drible da vaca. Nítido desvio de finalidade da lei.
Claro que não pode ser assim. Uma república na qual todos devem ser tratados igualmente não pode admitir esse discrimen. Um membro do MP ou do Judiciário que entre em férias durante o período eleitoral não pode fazer o que quiser. Nem no período eleitoral e nem nunca. Em férias, o máximo que pode fazer é descansar e viajar. O certo é que não pode fazer atividade política. É o que aconteceu. Observe-se que Moro aceitou o convite para ser ministro mesmo sem estar em férias. Quando viajou ao Rio ainda não estava de férias. Aceitou o convite e depois entrou em férias. Começou a montar o ministério. É juiz e, ao mesmo tempo, presta serviço ao Executivo, violando a separação de Poderes e a CF.
Registre-se: as férias, para o deslinde da controvérsia, são absolutamente irrelevantes. Tanto é verdade que nem Moro acreditou na “tese das férias”, pois dela desistiu ao pedir exoneração no dia 15 último. Se estar de férias legitimava o ato de fazer política, por qual razão então se exonerou antes do tempo? A resposta é óbvia, pois.
Sigo. O certo é que, aberto um procedimento para apurar esse imbróglio – há outros, como sabemos –, Moro pediu exoneração. Não teria o pedido o objetivo de tornar prejudicado um eventual PAD (que, por consequência, impediria a exoneração)? Por isso, não há outro caminho a não ser o CNJ conceder a cautelar para sustar a exoneração. Há evidente periculum in mora, porque, exonerado, não há como o Estado buscar apurar uma infração cometida por um servidor. Não há solução diferente ou intermediária.
De observar que os fatos são ainda mais graves se levarmos em conta que o convite para ser ministro da Justiça foi gestado quando o magistrado ainda exercia sua função, conforme declarado pelo general Hamilton Mourão (e não desmentido). Também reuniu-se, durante a campanha eleitoral, com o anunciado futuro ministro da pasta a ser denominada Ministério da Economia, Paulo Guedes. Esse encontro foi confirmado pelo próprio juiz, tudo conforme demonstrado no pedido de cautelar feito pelos deputados.
Se for negada a cautelar, estará aberto um grave precedente: todo funcionário, sob ameaça de um PAD, pede exoneração e zera tudo. E o Estado nada poderá apurar. Estará criada nova forma de exclusão de responsabilidade de funcionário público: o pedido de exoneração antes do PAD. Lembro ainda das repercussões do precedente no caso de Marcelo Miller. Também estava de licença prêmio ou férias, estão lembrados?
Simples assim. “It is the law”, como disse o médico para o staff do presidente norte-americano na série House of Cards. Explico: necessitando de um transplante de fígado, seu médico particular queria furar a fila dos transplantes. A resposta foi negativa. O diretor do hospital agiu por princípio e não por política. Pela lei, a fila de transplantes não pode ser quebrada. Nem se pelo presidente da República. Bingo. Qual é princípio – que sustenta a regra – que seria violado? Simples: uma vida é igual a uma vida. E a do presidente não vale mais. Tudo para dizer que aqui, no caso, Moro não está acima da lei. Juiz não pode exercer atividade política. Nem por um dia. Nem por vários dias. Aliás, ele mesmo sempre disse que ninguém está acima da lei. Pois é. Nem ele.
Vamos ver como o CNJ sai dessa sinuca de bico. Numa palavra final, não se diga que há má vontade na discussão dos assuntos que envolvem Sérgio Moro. Usa-se simplesmente Moro contra Moro. Sua rigidez no uso da lei deve também valer para si.
Daí a questão da licença vernacular e semântica que, com todo o respeito, permiti-me fazer no título deste articulum, usando a expressão latina que trata do perigo da demora em Direito. Trata-se de uma licença poético-republicana.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Conjur, 20 de novembro de 2018