Sem ‘romantismo’, juíza desconsidera vínculo empregatício para entregadores de comida

29 de janeiro de 2020

Para a 37ª Vara do Trabalho de São Paulo, que rejeitou ação do MPT, trata-se de atividade legal, em que o trabalhador pode optar pelo modelo. Isso também descaracterizaria a alegação de jornada exaustiva. Segundo ela, nem todos querem ser empregados formais.

 

Observado o contrato de emprego sem romantismo, é de se esperar que haja uma parcela significativa da população com habilidades, capacidades e ânimo para o trabalho de outra forma que não em contrato de emprego e, existindo mecanismos capazes de gerar tais oportunidades de trabalho, devem ser regulados com o objetivo de cumprirem sua função social”, diz a juíza substituta Shirley Aparecida de Souza Lobo Escobar, da 37ª Vara do Trabalho de São Paulo, ao julgar improcedente uma ação do Ministério Público do Trabalho (MPT) que pedia reconhecimento de vínculo empregatício entre empresas e entregadores de comida.

“Todo trabalho humano deve ser protegido pela lei, na medida que não sufoque, aniquile, impeça ou dificulte o desenvolvimento, quando o modelo decorrente não implicar em ilegalidades”, afirmou a magistrada em sua decisão, de ontem (27), em que ela enumera vantagens e desvantagens de ser empregado formal. E considera que, no caso em análise, o trabalhador tem direito de optar pelo modelo.

Cabe recurso. A sentença, inclusive, contraria decisão de caso semelhante, da 8ª Vara, no final do ano passado. A juíza Lávia Lacerda Menendez identificou concorrência desleal entre empresas e determinou que o aplicativo de entregas Loggi reconhecesse o vínculo trabalhista com motoboys que servem à plataforma. De acordo com o MPT de São Paulo, a decisão é válida para todo o país e atinge aproximadamente 15 mil motociclistas.

 

Emprego e direitos

A ação civil pública proposta pelo MPT-SP, e rejeitada em primeira instância, referia-se às empresas de entrega Rapiddo e iFood. O Ministério Público sustenta que a contratação de trabalhadores autônomos, nesse caso, sonega o vínculo de emprego e consequentes direitos. E pedia pagamento de compensação em quantia correspondente a uma parcela do faturamento bruto, em valor não inferior a R$ 24,5 milhões.

“O tema é novo, global e desafiante uma vez que, com a evolução tecnológica, um mesmo modelo de operação comercial, industrial ou de serviços se espalha pelo mundo quase que de forma instantânea, com elementos de figuras jurídicas diversas entremeados e que precisa ser tutelado de acordo com o ordenamento jurídico de cada um dos países nos quais passa a ser utilizado”, analisa a juíza da 37ª Vara no início da seu despacho. Os procuradores afirmam que os aplicativos de entregas rápidas “são o novo canto das sereias nas relações de trabalho”, prometendo um “mundo encantado e idílico”, mas, na realidade, pioram as condições de vida dos entregadores. O que aconteceu no caso deles teria sido uma migração do emprego formal para a situação de Microempresário Individual (MEI).

A juíza inclui na sentença uma manifestação da Superintendência Regional da Receita Federal do Brasil da 8ª Região Fiscal (São Paulo), em resposta ao MPT, mostrando que os débitos dos MEIs inscritos em serviços de entrega rápida aumentaram de R$ 302.862,96, em 2012, para R$ 2.409.024,45 em 2018. E o números de MEIs inscritos em serviços de entrega rápida subiu, nesse período, de 2.254 para 35.805.

 

Sem “gatos”

Para a juíza, a atividade em questão não se trata de oferta de serviços de transporte, mas de tecnologia, “possibilitando ao usuário do aplicativo (cliente final) a compra de refeição no restaurante de sua preferência, dentre aqueles que ofertam seus produtos por intermédio do aplicativo, para ser entregue no local determinado por intermédio de entregador previamente cadastrado no aplicativo e escolhido de forma aleatória, considerando a proximidade com o restaurante que vendeu a refeição”. Ela lembra que o modelo não envolve só motociclistas. “Nos grandes centros, como na cidade de São Paulo, é bastante comum ver entregadores com suas caixas se locomovendo de bicicletas, bicicletas elétricas, patinetes e mesmo caminhando.”

Na decisão, a magistrada disse que não se comprovou no processo fraudes para sonegar vínculo de emprego. Ela também refutou a classificação de “gato” para as empresas envolvidas.

“Em razão do exposto, reconheço que a atividade da requerida é na área de tecnologia, explorando um aplicativo de internet que possibilita ao restaurante receber pedidos e ao entregador/motofretista prestar serviços de entrega, ficando a requerida com um percentual do valor da operação paga integralmente pelo comprador da refeição, não sendo sua atividade primordial a oferta de transporte de mercadorias e, ainda, que a relação entre a requerida e o operador logístico é de terceirização da atividade de entregador, ou seja, a requerida, nessa forma de atuação, é tomadora do serviço de entregadores ofertado pelo operador logístico”, sustenta. A juíza afirmou ainda que, pelo modelo, o motociclista tem a liberdade de optar entre prestar serviços “cadastrando-se diretamente no aplicativo da requerida ou por intermédio de um operador logístico”.

 

Dono do meio de produção

Ela também refutou a alegação de jornadas exaustivas. Afirmou na sentença que o motociclista se diferencia por possuir a ferramenta de trabalho – o meio de produção. “Possuir o meio de produção o afasta da figura do empregado que presta seus serviços utilizando-se dos meios de produção do empregador e o aproxima mais da figura de autônomo. Se possuir mais de um veículo, ou explorar o veículo colocando outra pessoa para trabalhar, estará mais próximo da figura de empregador”, escreveu.

“No tocante às jornadas é útil lembrar que o empregado pode ter jornada de 16 horas sem receber uma única hora extra. Basta manter dois empregos como é permitido pela legislação. O empregado também pode ter jornada de 382 horas mensais, sem receber uma única hora extra. É encontrada nessa situação uma grande parcela de trabalhadores da área da saúde, que laboram em escala 12×36 perfazendo jornada de 191 horas por mês para cada empregador”, disse ainda a juíza, para quem não se demonstrou a “servidão digital do trabalhador ao aplicativo”, porque o trabalhador, segundo ela, escolhe o dia que quer trabalhar e decide o início e o final da jornada.

Na parte final da sentença, de 31 páginas, ela aborda as mudanças no mundo do trabalho: “Com a tecnologia e outros fatores sociais evoluímos para uma sociedade plural, multifacetada, com interesses muito variados e compostas por indivíduos com anseios igualmente variados. Não é crível e nem razoável imaginar que toda a população possa e queira se amoldar entre empregados e empregadores. Há anseios que ficam por outros caminhos, interessando para o caso em análise o trabalho do motofretista nesse contexto como trabalhador autônomo”.

Além disso, acrescentou a juíza, o contrato de emprego traz uma série de atrativos (férias, 13º, descanso semanal, FGTS), mas também obrigações. “O empregado está obrigado a cumprir jornadas, ter horário para entrar, alimentar, repousar e sair; em regra o modelo legal é de 6 dias de trabalho para um dia de descanso; é necessário trabalhar em dias de sol ou de chuva, nos dias em que acorda bem humorado ou mal humorado, no dia de seu aniversário, ou do cônjuge ou do filho, pode ter o horário de trabalho alterado, perde o descanso semanal remunerado se faltar durante a semana, sendo que a partir da primeira falta sem justificativa já pode ser advertido, na segunda suspenso e já na terceira ou quinta (dependendo do enfoque da gradação das penas) pode ser demitido por justa causa e deixar de receber várias parcelas atrativas, bem como deixar de ter acesso ao seguro desemprego.” O empregado precisa ainda, lembrou, se sujeitar “aos humores do chefe” e dos colegas.

Para ela, o modelo analisado compreende “trabalho e renda” e não pode ser confundido com “emprego e renda”. “Reconhecida a legalidade do modelo de negócios, no que foi objeto da presente ação, não subsiste qualquer ofensa à coletividade e não se caracteriza o dumping social, sendo que a questão da concorrência entre modelos igualmente legais deve ser regulada pelo legislador. Não há, a princípio, concorrência desleal entre modelos que se amoldam à legalidade”, acrescentou.

 

RBA, 29 de janeiro de 2019