Na operação a + b = c, há como saber o resultado c sem conhecer os valores das parcelas a e b? Um médico não sabe se uma pessoa está realmente doente, mas prescreve um remédio fortíssimo que pode matar o paciente. Este deve tomar o remédio? Sim, para ambas as perguntas, disse a CCJ da Câmara dos Deputados em 23/04/2019.
As mais simples e triviais operações lógicas e obviedades da vida cotidiana (noutro exemplo, não pôr a carroça à frente dos bois) parecem não ser tão evidentes na tramitação da Proposta de Emenda Constitucional 6/2019, que dispõe sobre a “Reforma da Previdência”. Esta, remédio amargo para uma doença que o governo diz que existe, teve a constitucionalidade reconhecida pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) sem que a referida comissão tivesse tido acesso a estudos que demonstrassem a existência de tal doença e como ela deveria ser corretamente tratada.
Esses estudos, que deveriam atender aos requisitos jurídicos da isenção e transparência, deveriam também possuir rigor matemático para, por a mais b, demonstrar o resultado c = “necessidade da reforma”. Sem a e b, não poderia decorrer c e, logo, evidentemente não foi demonstrado à CCJ a “necessidade da reforma”.
Mas o governo não apenas se negou a exibir previamente à deliberação da CCJ os estudos que embasariam a PEC 6/2019. Ao que tudo indica, a verdade nua e crua é que eles não existiam [1]. Sem que houvesse estudos a demonstrar a necessidade de “reformar” radicalmente a seguridade, como poderia a CCJ considerar constitucional tal PEC? A resposta óbvia é que a CCJ não poderia. Ou melhor, não deveria, mas posicionou-se pela constitucionalidade da PEC desrespeitando as mais rudimentares exigências racionais e constitucionais.
Nesse passo, corre uma radical proposta de transformação da Seguridade que, segundo a estimativa do próprio governo, implicaria uma subtração de valores decorrentes de direitos sociais no montante de 1 trilhão e 200 bilhões de reais em 10 anos.
Aliás, pobres cidadãos! O bombardeio de falácias e terrorismo midiático [2]não lhes permitiu enxergar ainda que tais centenas de bilhões sairão dos seus bolsos. Pode um governo retirar mais de 1 trilhão de reais destinados à subsistência dos cidadãos manipulando números e enunciando falácias como buscar, tal “reforma”, maior igualdade social quando na verdade apenas restringe direitos sociais (inclusive o benefício assistencial às pessoas mais pobres e vulneráveis, previsto no art. 203, V, da CF) e busca instituir regime de capitalização favorável apenas aos banqueiros?
Nem tudo é possível. Essa é uma lição que as crianças e os governantes precisam aprender. As constituições e o constitucionalismo surgiram para ensinar aos últimos isso, disciplinando o exercício do poder político (rule of law) ao mesmo tempo em que estimulam os homens a saírem da infância política. Os legisladores, no exercício do poder constituinte derivado, também não podem tudo. Obviamente não podem desrespeitar as normas constitucionais e infraconstitucionais que disciplinam o trâmite dos processos legislativos. E não podem, também, produzir emenda constitucional que tenda a vulnerar cláusulas pétreas da Constituição (art. 60, § 4º, IV), dentre as quais o devido processo legal (art. 5º, LIV da Constituição).
O devido processo legal desdobra-se em duas ordens de princípios. Uma delas, conhecida como devido processo legal formal ou procedimental, exige sejam atendidas as regras e os princípios que disciplinam o trâmite dos processos, dentre os quais o direito ao contraditório. De outro lado, o devido processo legal material, substancial ou substantivo veda que o processo seja uma mera simulação de atos processuais com conteúdo prejudicial à razoabilidade e proporcionalidade [3].
É este que nulifica, por exemplo, uma emenda constitucional que determine ao brasileiro o dever de poupar para comprar uma cova na Lua; ou que de qualquer maneira contrarie as leis da Física ou Matemática; ou que institua o direito à aposentadoria somente quando do evento morte.
A Emenda Constitucional 95/2016, que instituiu o “Novo Regime Fiscal”, acrescentou o seguinte preceito ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT): “Art. 113 . A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro.”
Evidentemente esse artigo do ADCT foi violado com a apresentação da PEC 6/2019 sem estudos que demonstrassem seu impacto orçamentário e financeiro. Apenas essa disposição constitucional já era suficiente a que a PEC não tivesse a constitucionalidade reconhecida pela CCJ. Nítida violação ao devido processo legal procedimental.
Duas normas constitucionais são ínsitas especificamente ao conteúdo do due process of law em matéria previdenciária: a necessidade de equilíbrio financeiro e planejamento atuarial (CF, art. 201, caput), bem como de planejamento do custeio para os benefícios (art. 195, §5º). Tais preceitos exigem sem a menor sombra de dúvida que haja estudos sérios a embasar qualquer proposta de alteração das leis referentes a direitos previdenciários e assistenciais. O trâmite da PEC 6, desde sua propositura, passando pela aprovação na CCJ, sem base em necessários e sérios estudos, viola claramente o devido processo legal formal, o que inquina de manifesta nulidade todo o trâmite do referido projeto de lei. Mas também o devido processo legal substancial está sendo violado, uma vez que a infração a este ocorre sempre que um projeto de ato normativo tenha curso sem cálculos ou estudos de outra natureza que, por um imperativo racional, necessariamente teriam que precedê-lo.
A atuação do Estado mediante o fenômeno processual é talvez o mais estudado objeto do mundo jurídico (supondo-se possível essa quantificação). Da Ciência do Direito Processual Civil extraem-se, dentre outros conhecimentos relevantes à compreensão do processo legislativo da PEC 6/2019 [4], o seguinte ensinamento:
Processo é método de exercício do poder normativo. As normas jurídicas são produzidas após um processo (conjunto de atos organizados para a produção de um ato final). As leis, após o processo legislativo; as normas administrativas, após um processo administrativo; as normas individualizadas jurisdicionais, enfim, após um processo jurisdicional. Nenhuma norma jurídica pode ser produzida sem a observância do devido processo legal. Pode-se, então, falar em devido processo legal legislativo, devido processo legal administrativo e devido processo legal jurisdicional. O devido processo legal é uma garantia contra o exercício abusivo do poder, qualquer poder. (2016, p. 65)
E continua Didier Júnior, esclarecendo ainda não poder o Estado, em retrocesso, suprimir ou diminuir direitos sociais fundamentais, que é o objetivo da PEC 6/2019:
Não é lícito, por exemplo, considerar desnecessário o contraditório ou a duração razoável do processo, direitos fundamentais inerentes ao devido processo legal. Nem será lícito retirar agora os direitos fundamentais já conquistados; vale, aqui, o princípio de hermenêutica constitucional que proíbe o retrocesso em tema de direitos fundamentais. (idem, p. 67) (Grifo acrescentado)
Em seguida, o citado processualista contrapôs-se a eventual argumentação de que algo como a PEC 6/2019 seria imune ao dever de respeitar o due process of law:
Trata-se [o devido processo legal] de uma proteção contra a tirania (contra a produção tirânica de normas jurídicas, em níveis legislativo, administrativo, jurisdicional e privado). As palavras de Winston Churchil sobre a Magna Carta aplicam-se inclusive e principalmente ao devido processo legal: “E quando, nas idades subseqüentes, o Estado, dilatado com sua própria autoridade, tentou impor sua tirania sobre os direitos ou liberdades dos súditos, foi a essa doutrina que vezes e vezes se dirigiram apelos, nunca até hoje sem resultados”. (p.68)
“Toda atuação estatal, e não apenas uma parte dela, em todas as situações, não apenas em uma parte delas”, deve observar os princípios do Estado de Direito, da separação de poderes, do pacto federativo, do sistema democrático e do regime republicano. Tais princípios funcionam como “condição estrutural” da atuação estatal. O princípio do devido processo legal é um desses princípios. (p. 69)
A PEC 6/2019 foi apresentada pelo Governo ao Parlamento sem que o primeiro sequer soubesse da necessidade e urgência que alega. Logo, o trâmite da referida PEC, desde seu nascedouro, desrespeita as mais básicas exigências lógicas e os preceitos da Constituição que exigem, nos processos legislativos, efetivo planejamento visando ao equilíbrio atuarial e ao custeio da previdência.
Some-se que a PEC 6 é defendida com afirmações falaciosas, terrorismo
midiático e tramita com pressa desarrazoada [5]. Acrescente-se, por fim, o óbice constitucional que veda seu objetivo de retrocesso em matéria de direitos sociais e tem-se talvez a mais clara e mais impactante violação ao devido processo legal na história da democracia no Brasil.
“O secretário especial de Previdência e Trabalho disse que, na quinta-feira (25), a equipe econômica irá divulgar parte desses dados, mas contas ainda precisam ser realizadas. ‘É na comissão especial que nós vamos apresentar o conjunto dos documentos até porque a desagregação significa impactar o modelo que está sendo utilizado. Cálculos precisam ser feitos’.” (Grifou-se) https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/04/governo-ainda-precisa-fazer-calculos-para-divulgar-impactos-da-reforma-da-previdencia-diz-secretario.shtml
[2] https://www.conjur.com.br/2019-abr-21/sadi-medeiros-junior-inconstitucionalidade-reforma-previdencia
[3] “Sérgio Mattos demonstra que a concretização do devido processo legal substancial pela jurisprudência do STF é bem ampla e vaga: ‘segundo a jurisprudência do STF, devido processo legal substantivo pode significar desde a proibição de ‘leis que se apresentem de tal forma aberrantes da razão’, passando pela exigência ‘de que as leis devem ser elaboradas com justiça, devem ser dotadas de razoabilidade e de racionalidade’ (…)” (DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 18. Ed. V. 1. Salvador: Juspodium, 2016, p. 71)
[4] Esta, fosse uma petição inicial, deveria ser indeferida e seu autor ainda mereceria condenação por litigância de má-fé (CPC, arts. 5º e 80, II, III e V, 319, III e V – o último exigindo o “valor da causa”).
[5] V. nota 2.