Desemprego alto e aumento da informalidade faz com que 104 milhões de brasileiros tenham de viver com o equivalente a meio salário mínimo. Número de ambulantes na rua saltou mais de 500% entre 2015 e 2018
A vendedora ambulante Josefa Severina de Souza mora em uma casa de três quartos com os filhos e o marido no bairro Jardim do Colégio, em Embu das Artes, na Grande São Paulo.CAMILA SVENSON
Há muitos anos, Josefa Severina de Souza, de 58, não sabe mais qual é a sensação de sair de férias do trabalho. Não consegue achar na memória nem qual foi a última vez que conseguiu tirar alguns míseros dias de descanso. Mãe de oito filhos, dos quais quatro ainda moram com ela, a rotina dos últimos 25 anos de Josefa tem sido de trabalho diário nas ruas de São Paulo como vendedora ambulante de segunda a sábado. Atualmente trabalha no bairro de Pinheiros, onde durante todo o dia transitam centenas de pessoas e potenciais clientes. No domingo, se dedica às tarefas domésticas. O marido, de 62 anos, desempregado há mais de quatro anos, faz alguns bicos como pedreiro, mas é a renda dela a principal fonte de sustento de seis pessoas. Somando os cerca de 1.450 reais que ganha com as vendas mais o salário fixo de 1.000 reais que um dos filhos recebe trabalhando em um supermercado, cada membro da família sobrevive atualmente com uma renda per capita mensal de 408 reais, menos do que meio salário mínimo. “Se a gente não trabalha, não sobrevive, né?”, explica a vendedora.
A família de Josefa faz parte dos 50% mais pobres da população, quase 104 milhões de brasileiros, que em 2018 vivia, em média, com apenas 413 reais per capita, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) publicada em outubro. No mesmo ano, 5% da população, ou 10,4 milhões de pessoas no Brasil, sobreviviam com 51 reais mensais. O levantamento revelou ainda que a desigualdade se agravou no país. A renda domiciliar per capita desses 5% mais pobres caiu 3,8% de 2017 para 2018, enquanto a renda da fatia mais rica (1% da população) cresceu 8,2%.
Na avaliação de Maria Lúcia Vieira, gerente da Pnad Contínua, os ricos ficaram mais ricos e os pobres mais pobres, porque a renda total das famílias vem majoritariamente do trabalho. “Com a recessão, o mercado de trabalho também entrou em crise, e o desemprego aumentou [hoje atinge 12,6 milhões de brasileiros]. O que afeta muito mais os mais pobres, já que o estrato mais rico tem geralmente outras fontes de renda além do emprego, como, por exemplo, dinheiro proveniente de aluguéis, pensões”, explica. Ainda que nos últimos dois anos a população ocupada tenha voltado a crescer, os empregos criados foram, principalmente, os informais. “Os postos que estão surgindo são pouco remunerados e de baixa qualificação”, diz Vieira.
Informalidade bate recorde
Entre julho e setembro deste ano, a taxa de informalidade da população ocupada bateu recorde da série iniciada em 2012, chegando a 41,4% dos trabalhadores. Ou seja, a cada 10 trabalhadores, seis têm ocupação precarizada. Segundo a gerente, o número de brasileiros que trabalham como ambulantes informais vendendo alimentos foi um dos que mais aumentou nos últimos tempos. Entre o segundo trimestre de 2015 e o segundo trimestre de 2019, o número desses ambulantes cresceu 510% subindo de 78,4 mil para 478,3 mil pessoas.
Um dos filhos de Josefa, que já saiu de casa, faz parte desse grupo de novos ambulantes. Após ser demitido de um trabalho com carteira assinada, resolveu seguir os passos da mãe e apostar nas vendas na rua. Fabiano Manuel de Souza, de 26 anos, ajuda a mãe a transportar no ônibus a mercadoria e depois segue para outro ponto também em Pinheiros, na zona oeste da cidade. “Não é um trabalho fácil, e as vendas dependem muito de cada dia. Faça chuva ou faça sol a gente vai pra rua. Agora no calor é mais fácil ganhar com água, mas está tudo meio parado. Não sei se as coisas vão melhorar, acho que esse Governo novo é pior. Eu preferia o Lula, fui até em manifestação contra o Bolsonaro no Largo da Batata para protestar, mas também para aproveitar as vendas”, conta.
Apesar dos tempos de economia fraca e pouco dinheiro no bolso, Josefa está mais tranquila nos últimos meses. Neste ano, conseguiu, finalmente, uma autorização na prefeitura da capital paulista para legalizar a sua atividade e o carrinho que utiliza na calçada para expor os produtos que vende: água, refrigerantes, salgadinhos e balas. O local escolhido por ela é estratégico, fica em frente a um ponto de ônibus, a poucos metros do metrô Faria Lima. “Agora estou na paz, despreocupada. Antes era uma corrida de gato e rato entre eu e os fiscais. Cheguei a perder 13 vezes a minha mercadoria aqui, a polícia levou tudo. Eles corriam atrás de mim como se eu fosse um ladrão, vivia tensa. Eu estava apenas trabalhando. Eu nem tinha o carrinho, vivia com sacolas para sair correndo”, conta ao lado da filha Kelly, de 20 anos, que está cursando faculdade de educação física, mas ajuda a mãe nas horas vagas.
Para regularizar sua atividade, Josefa entrou no programa Tô Legal! da Prefeitura de São Paulo e paga um imposto trimestral de quase 700 reais. Somou-se aos novos gastos um estacionamento para seu carrinho de 150 reais mensais e mais 10 reais diários para que outro vendedor da região a ajude a levá-lo à garagem. Para que o dia seja lucrativo, ela precisa trabalhar das 10/11h da manhã até 21h/22h da noite, de segunda a sábado.
O dia de Josefa começa, no entanto, muito mais cedo, e termina muito mais tarde. A vendedora acorda 6h da manhã para preparar o café da manhã dos dois filhos, de 18 e 16 anos, que vão para a escola e para organizar a marmita do filho que trabalha. Todos moram em uma casa simples de três quartos. Como vive no bairro Jardim do Colégio, em Embu das Artes, na Grande São Paulo, ela leva quase duas horas para chegar ao local de trabalho e precisa pegar dois ônibus para percorrer um trajeto de cerca de 25 km. Na volta, acaba chegando em casa depois da meia-noite. É quando Josefa começa a preparar o jantar e o almoço do dia seguinte dos filhos e marido. “Acabo dormindo 3h da manhã. Mas o jantar é a única refeição forte do dia que eu faço. Não tenho onde aquecer a comida lá no meu carrinho e se compro na rua gasto 15 reais. Não posso, preciso economizar para os remédios. Por isso, nem almoço”, explica.
Há três anos, a vendedora trata algumas feridas na perna ocasionadas pela má circulação sanguínea, chamadas úlceras varicosas. O tipo de lesão acomete, muitas vezes, pessoas que passam muito tempo em pé. “Preciso passar uma pomada cara, de 52 reais, que compro toda semana, e enfaixar as pernas. Nem passo mais no posto de saúde porque eles não têm nada. O médico diz que preciso ficar de repouso uns três meses, mas cada dia que não trabalho o dinheiro no fim do mês diminui, não dá”.
Se pudesse escolher, Josefa optaria hoje por ter um emprego com carteira assinada, onde pudesse usufruir dos direitos trabalhistas, como o de tirar uma licença médica remunerada. “Mas, infelizmente, eu já não tenho mais idade. Ninguém vai me contratar com 58 anos”, lamenta a vendedora que chegou a trabalhar 13 anos registrada em diferentes empregos antes de virar ambulante.
Ela veio da Paraíba para São Paulo aos 13 anos e já conseguiu, quando chegou, um posto em uma fábrica. “Como contribui esses anos, agora estou pagando o INSS para completar os 15 anos e tentar aposentar por idade. Ainda tenho que ver o que essa reforma da Previdência vai mudar nos meus planos, mas a aposentadoria vai ajudar muito, porque não vou poder trabalhar para sempre na rua”, explica. O marido também deve conseguir se aposentar por idade daqui a 3 anos.
Enquanto as aposentadorias não chegam, Josefa tem um plano B para melhorar de vida. Está há alguns anos construindo um novo andar na casa, com quartos separados para cada filho, para onde pretende se mudar com toda a família. “Aí vamos alugar essa parte de baixo e ganhar um dinheiro extra. A obra a gente começou com um acerto que meu marido ganhou quando foi demitido. Mas não conseguimos terminar e está difícil sobrar dinheiro, vivemos apertados”, explica. O dinheiro anda tão escasso que, às vezes, ela pede para um primo um empréstimo. Ele empresta um vale alimentação para que ela compre novas mercadorias e ela só paga dez dias depois. Josefa acredita, no entanto, que com o dinheiro que fizer nas vendas no Carnaval de 2020 talvez consiga poupar um pouco. “É a melhor época. Acho que no ano que vem conseguimos terminar a obra e mudar lá pra cima. Acho que vai melhorar muito”, diz sorrindo.
El Pais, 05 de novembro de 2019