Vivemos a era da chamada multiplicação dos direitos (Norberto Bobbio, A era dos direitos), principalmente no âmbito dos direitos sociais. Tal vem ocorrendo a partir do final da Segunda Guerra Mundial, sobretudo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que, no artigo 2º, I, estabelece que “todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”.
Nessa senda andou a Constituição Federal brasileira de 1988, assegurando no artigo 5º, caput, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.
Especificamente para o âmbito trabalhista, estabelece a Carta Maior (artigo 7º, incisos XXX, XXXI e XXXII) a proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do portador de deficiência; proibição de distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos, além dos demais direitos sociais inscritos nos demais incisos deste artigo.
O problema, no entanto, é transformar em realidade essas e outras disposições legais, uma vez que teoria e prática nem sempre andam nos mesmos caminhos e velocidades. Por isso, adverte Norberto Bobbio que nos últimos anos falou-se e continua a se falar de direitos do homem, entre eruditos, filósofos, juristas, sociólogos e políticos, muito mais do que se conseguiu fazer até agora para que eles sejam reconhecidos e protegidos efetivamente, ou seja, para transformar aspirações (nobres, mas vagas), exigências (justas, mas débeis), em direitos propriamente ditos (isto é, no sentido em que os juristas falam de “direito”).
São alguns exemplos no nosso Direito do Trabalho, só para ilustrar, as diferenças de salários entre homens e mulheres, as dificuldades encontradas pelo cidadão com mais de 45 anos de idade e dos deficientes para obtenção de um emprego, a ineficácia das normas de segurança no trabalho (embora seja o Brasil um dos mais adiantados países em termos de proteção legal sobre o tema, continua registrando elevado número de acidentes de trabalho), o que comprova o entulho de reclamações individuais nas varas do Trabalho (e isso porque, de acordo com levantamentos, somente 10% dos trabalhadores reclamam seus direitos violados e, mesmo assim, depois de rescindidos os contratos de trabalho). Com a reforma trabalhista de 2017, que nada fez para prevenir litígios entre empregados e empregadores, mas apenas criou empecilhos para o acesso do trabalhador à Justiça, esses números estão diminuindo, porém, falsamente, porque as causas dos conflitos continuam da mesma forma.
Diante dessa realidade, é preciso que se crie mecanismos de prevenção de conflitos trabalhistas e de soluções extrajudiciais, e, quando o trabalhador tiver que ir ao Judiciário, que seja por meio de instrumentos capazes de tornarem realidade o arcabouço legal e convencional existente. Tais instrumentos consubstanciam-se na jurisdição coletiva, porque não há mais que se falar na possibilidade de usar o ortodoxo sistema liberal individualista da CLT e normas afins para dirimir os conflitos de massa.
No processo do trabalho regulado pela CLT, tem-se privilegiada a tradicional jurisdição individual, destinada à solução dos conflitos individuais de trabalho, baseada em pleitos de horas extras, de aviso prévio, de férias indenizadas, de equiparação salarial e de cancelamento de punições aos empregados, entre outros. Esse sistema, contudo, não serve mais para dar proteção efetiva aos direitos violados, que muitas vezes o são por meio de atos coletivamente considerados.
Como a CLT foi e continua sendo inspirada na tutela individual, para a tutela coletiva no processo do trabalho, há que se aplicar o plexo da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85), o Código de Defesa do Consumidor e, subsidiariamente, o Código de Processo Civil — este somente quando compatível. A CLT tem aplicação restrita no sistema de tutela coletiva, porque foi concebida dentro de uma filosofia individual, sendo as suas normas praticamente inviáveis no sistema de jurisdição coletiva, salvo no caso da ação de dissídio coletivo, cujo objeto peculiar é a criação, modificação, extinção, manutenção ou interpretação de normas jurídicas. A sua aplicação pode se dar mais como forma de adaptação de algumas normas da Lei da Ação Civil Pública e do CDC mediante as peculiaridades do direito e do processo do trabalho. Um exemplo é a impugnação de decisão liminar na ação civil pública, que, de acordo com o artigo 12 da Lei 7.347/85, seria por meio de agravo de instrumento, mas no processo do trabalho, em que tal recurso tem aplicação apenas para destrancar outros recursos denegados, aplica-se o mandado de segurança. Todavia, no tocante à ação de dissídio coletivo, continua-se aplicando a CLT (artigos 856 e seguintes) e, somente subsidiariamente, as disposições da Lei da Ação Civil Pública e do CDC, porque se trata de uma ação especial e excepcional, destinada à criação de normas jurídicas e de novas condições de trabalho, cuja feição não se alinha aos dois sistemas coletivos antes mencionados que, não obstante, destinam-se à defesa dos interesses e direitos metaindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos) pela ameaça ou violação de normas legais preexistentes.
Advirta-se, por necessário, que a aplicação dos dois sistemas coletivos supracitados está autorizada pela própria CLT, conforme disposição expressa do artigo 769 (nos casos omissos, o Direito Processual comum será fonte subsidiária do Direito Processual do Trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com as normas desse título).
Veja-se, por exemplo, a questão do benefício da Justiça gratuita nas ações de natureza coletiva, ajuizadas pelos sindicatos ou outros legitimados coletivos na busca do cumprimento de direitos de um grupo de integrantes da categoria profissional, que tem tratamento especial nos artigos 18 da Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) e 87 da Lei 8.078/90 (CDC), cuja redação deste último é a seguinte:
“Nas ações coletivas de que trata este Código não haverá adiantamento de custas emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, nem condenação da associação autora, salvo comprovada má-fé, em honorário de advogados, custas e despesas processuais”.
A aplicação deste mandamento legal às ações coletivas vem expressamente prevista no artigo 21 da Lei 7.347/85, in verbis:
“Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Tit. III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor”.
A concessão do benefício da Justiça gratuita nas ações coletivas também na Justiça do Trabalho decorre do mandamento maior do artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”), cujo objetivo foi facilitar o acesso do jurisdicionado ao Poder Judiciário para evitar lesão ou ameaça a direitos, sendo a forma coletiva a mais adequada. Não cabe, portanto, qualquer diferenciação de tratamento quando se usa a tutela coletiva na Justiça do Trabalho, senão estaríamos diante de uma discriminação odiosa, vedada pelo caput do artigo 5º da Carta Maior, a qual estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
Raimundo Simão de Melo é consultor jurídico, advogado, procurador regional do Trabalho aposentado, doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP e professor titular do Centro Universitário UDF e da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (SP), além de membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho. Autor de livros jurídicos, entre outros, Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador e Ações acidentárias na Justiça do Trabalho.