É natural que as pessoas atribuam características excepcionais à época que vivem. Em geral pensamos que grandes transformações únicas na história da humanidade estão ocorrendo.
Muitas vezes esse sentimento de singularidade é acompanhado por certa dose de nostalgia com o passado, que sempre nos parece melhor sob alguma dimensão.
Hoje vou correr o risco de cair nessa armadilha e atribuir um papel excepcional na história da sociedade brasileira ao desenvolvimento que tem ocorrido na última década e meia no mercado de trabalho, apesar de não nutrir nenhuma nostalgia pelo nosso passado.
Parafraseando o ex-presidente Lula, é correto afirmar que nunca antes na história deste país tivemos oferta de trabalho inelástica. A recente inelasticidade da oferta de trabalho explica boa parcela da elevação dos salários, principalmente dos trabalhadores mais desqualificados e, portanto, explica boa parcela da melhora da recente queda na desigualdade.
Mas o que exatamente vem a ser a inelasticidade do mercado de trabalho? A oferta é elástica se responde muito a preços. Assim, a oferta de soja, por exemplo, é elástica se pequenas elevações dos preços induzirem grandes aumentos na quantidade produzida. E, simetricamente, se pequenas reduções dos preços induzirem grandes reduções nas quantidades produzidas.
Durante séculos fomos um país escravista. O escravismo torna a oferta de trabalho no longo prazo muito elástica. Isso porque o escravismo torna o trabalho um fator de produção reprodutível, como é o caso, hoje, do capital físico.
No escravismo, se houver elevação da rentabilidade do trabalho, os produtores aumentam sua demanda por importação de mão de obra escrava. A maior importação eleva o número de escravos até que a rentabilidade volte a cair.
No longo prazo, a rentabilidade do escravo tem que ser igual ao custo de compra do escravo no porto da África adicionado ao custo do transporte. Ou seja, independentemente da melhora técnica no escravismo, a rentabilidade de um escravo está fixada.
Qualquer melhora técnica que eleva a rentabilidade de um escravo redunda na elevação das importações. É nesse sentido que no escravismo a oferta de trabalho é elástica: a rentabilidade do escravo no longo prazo está fixada independentemente da tecnologia.
Quando terminou o escravismo, tivemos um período em que a importação de mão de obra imigrante tornava a oferta de trabalho elástica. Qualquer pressão por elevação dos salários era compensada pela alta da importação de imigrantes.
Quando o mundo se fechou para a imigração a partir dos anos 30 do século 20, o Brasil iniciou o processo conhecido por transição demográfica. A forte queda da mortalidade a partir dos anos 30 a partir de valores muito elevados sem que houvesse simultaneamente queda da natalidade fez com que a oferta de trabalho crescesse muito rapidamente.
Esse fenômeno foi potencializado, pois a sociedade brasileira enfrentou a transição demográfica sem universalizar a educação fundamental. Como existe forte relação entre a escolaridade dos indivíduos e a decisão reprodutiva, nossa decisão de não universalizar a educação fundamental naquele momento de nossa dinâmica demográfica aumentou muito a oferta de trabalho desqualificado.
Dessa forma, apesar de a oferta de trabalhadores deixar de responder a fatores puramente econômicos desde os anos 30, a dinâmica demográfica associada à decisão da sociedade de não universalizar a educação fundamental criou um fôlego de várias décadas a um modelo de desenvolvimento com oferta muita elástica de trabalho.
Parece que os cinco séculos de oferta elástica de trabalho estão ficando para o passado. Para nós, o século 21 já pode ser chamado do século da restrição de mão de obra.
Não será a solução para todos os nossos problemas e, em particular, não resolverá o problema da baixa produtividade da mão de obra, em grande medida fruto da baixa qualidade de nosso sistema educacional. Mas certamente ajudará e com certeza contribuirá muito para reduzir a desigualdade.
Quem viver verá.
SAMUEL PESSÔA é doutor em economia e pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da FGV.
Escreve aos domingos nesta coluna.
Fonte: Folha de S.Paulo