Uma análise da abrangência dos efeitos suspensivos em caso de repercussão geral

1 de agosto de 2019

Por  e 

Por ocasião da admissão do Recurso Extraordinário 1.121.633, com repercussão geral (Tema 1.046), foi determinada a suspensão nacional de todos os processos pendentes que versem sobre a validade de norma coletiva que limita ou restringe direito trabalhista não assegurado constitucionalmente e que não seja absolutamente indisponível.

A partir deste marco decisório, surge a dúvida se a suspensão atingiria somente as questões relacionadas à supressão do pagamento das horas in itinere ou se, em uma dimensão mais abrangente, repercutiria em qualquer questão atinente à flexibilização, por norma coletivamente negociada, de direito trabalhista não assegurado constitucionalmente.

Em momento anterior, já tratamos do assunto sob o aspecto de que a repercussão geral de uma questão não poderia paralisar o processo em sua integralidade, mas somente em relação ao capítulo dela dependente, prosseguindo-se o processamento do feito em relação aos demais pedidos desconexos[1].

Aqui, de outra parte, o objeto da análise se adstringe à definição da questão que será impactada pela suspensão, se, em uma dimensão mais restrita, atingirá apenas os pedidos relativos à supressão do pagamento das horas in itinere, ou se contemplará toda e qualquer discussão acerca da flexibilização de direito trabalhista não assegurado constitucionalmente por negociação coletiva.

Referida quaestio, aliás, apresenta-se de vital interesse no âmbito trabalhista, máxime porque importa em saber se deverão ser suspensos apenas pedidos de nulificação de cláusulas normativas que suprimam horas in itinere ou, em situação muito mais numerosa, quando envolvam qualquer outro direito não previsto constitucionalmente.

A discussão depende, a nosso ver, da verificação dos seguintes elementos: (a) dos fatos essenciais do caso-piloto da repercussão geral; (b) da amplitude com que serão esses fatos caracterizados ou agrupados, à vista da relação jurídica debatida; e (c) se a discussão desta relação jurídica é essencial para resolver os pedidos submetidos ao Poder Judiciário.

Por fatos essenciais ou materiais entende-se aqueles fatos concebidos pelo órgão julgador como necessários para se alcançar determinado raciocínio jurídico. Lembre-se, por oportuno, de Rylands v. Fletcher, tratado por Goodhart. Um empreiteiro foi contratado para construir um reservatório de água que, mais tarde, vazou sobre a área do vizinho do proprietário-contratante, resultado de sua negligência. Os fatos do caso poderiam ser assim sistematizados: (i) X tinha um reservatório em sua propriedade; (ii) o empreiteiro, contratado por X para edificá-lo, agiu com negligência; e (iii) a água escoou do reservatório e prejudicou Y. Todavia, foram considerados pela corte como fatos essenciais: (i) X tinha um reservatório em sua propriedade e (ii) a água escoou para a propriedade vizinha, causando danos a Y. Anota Goodhart que a corte ignorou o fato relacionado à negligência do empreiteiro, considerado como não essencial (imaterial), omissão que tem sido referida pela doutrina como leading case de responsabilidade objetiva (absolute liability) do proprietário-contratante[2].

Todavia, impende destacar que os fatos nunca se repetem e nunca podem ser considerados absolutamente idênticos. A propósito, Schauer adverte que “[…] não há dois eventos exatamente iguais. Para que uma decisão seja precedente para outra decisão, não há necessidade de que os fatos dos casos sejam absolutamente idênticos. Caso isso fosse exigido, nada seria precedente para qualquer outro caso”[3]. De modo que, em ordem a encontrar situações suficientemente similares, é necessário saber quais são as aproximações juridicamente relevantes (relevant similarities), a partir de alguma regra que as defina[4].

No caso em análise, muito embora tenha o debate surgido da supressão do pagamento das horas in itinere, por força de norma coletiva, a decisão que definirá a validade da negociação[5] depende justamente de saber se a Constituição outorga ou não às normas coletivas o potencial de flexibilizar direitos legalmente previstos. Logo, a cláusula convencional sobre horas in itinere constitui-se apenas como pano de fundo para uma discussão melhor dimensionada.

Isso porque os fatos são categorizados, tomando em conta especialmente a linguagem, os conceitos jurídicos, a cultura e os valores de determinada época. A negociação coletiva, da qual resulte na flexibilização de direitos trabalhistas, integra uma categoria fática, reputada essencial para o reconhecimento da repercussão geral, acompanhada da imediata suspensão dos processos que versem sobre essa especial questão, em consonância com a disposição normativa inserta no artigo 1.035, parágrafo 5º do CPC.

Nesse encalço, torna-se irrelevante para a relação jurídica debatida se o direito limitado pela norma coletiva se traduz no pagamento das horas in itinere ou em qualquer outro com base infraconstitucional. Afinados com as lições de Goodhart e Schauer, podemos fixar como fatos essenciais, repisa-se, a existência de norma coletiva cuja validade é questionada e que tenha como conteúdo a flexibilização de direito infraconstitucional.

Essa compreensão, aliás, permite, em maior medida, o desenvolvimento da missão de outorga de unidade do Direito conferida ao Supremo Tribunal Federal sob a perspectiva constitucional, racionalizando o sistema, ao mesmo tempo em que promove a estabilidade, coerência e integridade, nos termos vaticinados pelo artigo 926 do CPC.

Portanto, mais apropriada é a utilização do termo aproximação dos fatos em substituição à identidade fática. Quer seja, portanto, a supressão de pagamento das horas itinerantes, quer seja a supressão do fornecimento do vale-transporte ou qualquer outro direito trabalhista não contemplado pela Constituição Federal, mas flexibilizado por norma autônoma, discutida sua validade em ação judicial, ficam, por ora, suspensos os trâmites dos processos que veiculam tal discussão jurídica, nada obstante a base fática não seja idêntica àquela estampada no precedente.

Imagine se restrita a análise apenas à supressão das horas in itinere. A consequência direta desse raciocínio seria a proliferação de recursos extraordinários, questionando a validade ou invalidade, uma a uma, de cada norma coletiva flexibilizadora de outro direito trabalhista não assegurado constitucionalmente. Decerto, essa prática atentaria contra o cânone axiológico que se desdobra do novo estatuto processual, com ênfase para a teoria dos precedentes, eficiência sistêmica e a razoável duração do processo.

Voltamos a repetir: a negociação coletiva, da qual resulte na flexibilização de direitos trabalhistas, integra uma categoria fática mais abrangente, tida como essencial para o reconhecimento da repercussão geral, o que, por consequência, tem o condão de paralisar o trâmite dos processos que versem sobre a epigrafada questão. Assim, o futuro precedente resultante de um julgamento com essa amplitude não seria obiter dictum[6] e, portanto, a pertinente ordem de suspensão não encerraria uma mera artificialidade.

Esse raciocínio, por fim, coaduna-se com a garantia constitucional de tratamento isonômico (treat like cases alike), além de estabilidade, coerência e segurança jurídica, orientando os atores sociais e coletivos na forma de agir e de se portar, conformando-se com a solução jurídica que vier a ser adotada pelo STF, em futura decisão plenária. Nada mais é, ademais, que a materialização do espírito do CPC/2015, marcado pela ideia de respeito aos precedentes, na pavimentação de caminhos em busca da racionalização de nosso sistema de distribuição de justiça.

 


[1] Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-jul-09/opiniao-repercussao-geral-nao-paralisar-acao-trabalhista-inteira.
[2] GOODHART, Arthur L. Determining the ratio decidendi of case. Yale Law Journal, vol. 40, 1930, p. 161-183.
[3] SCHAUER, Frederick. Precedent. Stanford Law Review. Vol. 39. N. 3, 1987, p. 575.
[4] SCHAUER, Frederick. Precedent. Stanford Law Review. Vol. 39. N. 3, 1987, p. 577, nota 13. Ver ainda, sobre tal sistemática, PRITSCH, Cesar Zucatti. Manual de prática dos precedentes no processo civil e do trabalho. Editora LTr, 2018, p. 100-109.
[5] O caso se refere à época em que a situação estava regulada pelo parágrafo 2º do artigo 58 da CLT, incluído pela Lei 10.243/2001 e revogado pela Lei 13.467/2017.
[6] Obiter dictum é a parte não vinculante de um precedente, por isso “dito para morrer”. São considerações jurídicas não essenciais para a resolução da controvérsia o debate sobre fatos hipotéticos, não comprovados ou irrelevantes para o deslinde do caso concreto. Fonte: NOGUEIRA, Gustavo Santana. Stare Decisis et Non Quieta Movere: a vinculação dos precedentes no Direito Comparado e Brasileiro. Ed. Lumen Juris, 2011, p. 170.

 

 é juiz do Trabalho do TRT-4, ex-procurador federal e juris doctor pela Universidade Internacional da Flórida (EUA).

 é juíza do Trabalho do TRT-14, doutoranda em Direito e Processo do Trabalho Contemporâneo pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

 é juiz do Trabalho do TRT-8, professor adjunto da Universidade Federal do Pará (UFPA) e doutor em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP), com estágio na Universidade de Massachusetts (EUA).

 

Conjur, 1º de agosto de 2019