REITO CIVIL ATUAL
Por Eduardo Tomasevicius Filho
Nos últimos meses, o debate relativo ao maior ou menor grau de interferência do Estado nas relações privadas intensificou-se, em especial, em matéria de direito da criança e do adolescente. Há quem pleiteie o ensino domiciliar, contestando a obrigatoriedade da matrícula de crianças e adolescentes na rede regular de ensino, por não se acreditar na escola como instituição destinada à formação da pessoa. Do mesmo modo, questiona-se a exigência de vacinação dos filhos, com o argumento de que o sistema imunológico das crianças sem prévio contato com vírus enfraquecidos é capaz de enfrentar a implacável natureza.
Nesse mesmo contexto de defesa de mais liberdade para os indivíduos, editou-se, no dia 30 de abril, a Medida Provisória 881, intitulada de “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, com o intuito de desburocratizar o exercício da livre-iniciativa. É certo que há décadas se fala do denominado “Custo Brasil”, o qual prejudica verdadeiramente a economia e acerca do qual muito pouco se fez para reduzi-lo ao longo das quatro últimas décadas. Mas, além dos dispositivos voltados a esse fim, a MP 881 alterou importantes institutos disciplinados no Código Civil.
O primeiro deles foi a desconsideração da personalidade jurídica. Introduzida no Brasil por Rubens Requião em 1960, foi incorporada ao Direito brasileiro na década de 1990 com o Código de Defesa do Consumidor de forma ampla e recepcionada como norma geral em 2002 no Código Civil, embora limitada às hipóteses de desvio de finalidade e confusão patrimonial.
No caso, alterou-se a redação do caput do artigo 50, com a substituição da expressão “pode o juiz decidir (…) que os efeitos de certas e determinadas relações (…)” por “pode o juiz (…) desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas obrigações (…)”. Inseriu-se, ademais, a expressão “beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”. De modo deselegante do ponto de vista estilístico, a palavra “abuso” é usada no início e no fim do dispositivo legal. Tendo em vista que o conteúdo da norma é o mesmo, pode-se questionar em que medida a alteração do caput do artigo 50 contribuirá para a melhoria da atividade econômica no Brasil.
Os parágrafos 1º e 2º do artigo 50 inseridos pela MP 881 apenas fizeram o reconhecimento legislativo das interpretações doutrinária e jurisprudencial das situações de desvio de finalidade e confusão patrimonial. De fato, merece destaque a intenção de limitar interpretações abusivas do instituto jurídico, como, por exemplo, presumir o grupo econômico como hipótese de arranjo fraudulento ou que já há desvio de finalidade pelo mero desenvolvimento da atividade econômica sem que se tenha procedido à alteração do objeto social.
Entretanto, o grande problema da desconsideração da personalidade jurídica relacionado à atividade empresarial está no Direito do Trabalho, em que se seguem os critérios da “teoria menor” do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, por ser mais protetiva ao trabalhador, em vez da “teoria maior” do artigo 50 do Código Civil, de acordo com a qual se requer a prova do abuso no emprego da pessoa jurídica. Dessa forma, é bem provável que o objetivo almejado pela MP 881 não seja atingido na prática.
Também foi objeto dessa medida provisória a reafirmação da força obrigatória dos contratos. Mais conhecida como pacta sunt servanda, por meio desta se exige o respeito à palavra dada e a manutenção de suas cláusulas nos termos em que foram avençadas pelos contratantes.
É verdade que, no Brasil, o Poder Judiciário tem amplos poderes para modificar o conteúdo contratual, o que pode gerar insegurança jurídica nos negócios, ao contrário de outros países, em que não há esse mesmo poder. Há duas razões que justificam esse fato em nosso país: o histórico de inflação, que exigia o reequilíbrio das prestações para preservação do padrão e reserva de valor da moeda; e, infelizmente, a cultura do desprezo ao Direito vigente, pela reiteração de práticas abusivas e cláusulas nulas de pleno direito, inclusive aquelas incompatíveis com a boa-fé.
A função social do contrato, inserida no artigo 421 do Código Civil, foi uma inovação do Direito brasileiro. Trata-se de um princípio de justiça contratual, por meio do qual o juiz pode corrigir os efeitos produzidos entre as partes, em um primeiro momento, quando estes forem socialmente inaceitáveis por prejudicarem a coletividade ou por estarem em desacordo com valores fundamentais e, em um segundo momento, quando houver a produção de efeitos diversos daqueles esperados por uma das partes ao ter celebrado o contrato.
Com a edição da MP 881, a liberdade de contratar continua sendo limitada pela função social do contrato, mas esta, por sua vez, passa a ser limitada pela liberdade de contratar no exercício da atividade econômica, em especial pela tal “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, o que pode caracterizar petição de princípio. Lendo atentamente tais afirmações, duas delas estariam relacionadas à função social do contrato: são aquelas dos incisos V e VIII do artigo 3º da MP 881, em que se estabelecem, respectivamente, a presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica — traduzindo-se: na celebração dos contratos —, preservando a “autonomia de sua vontade”, exceto em caso de disposição expressa em contrário, e a preservação da livre estipulação das partes nos contratos empresariais.
Tem-se observado, na grande maioria dos casos, que a função social do contrato é invocada nos denominados contratos existenciais, que envolvem direitos sociais, entre os quais a educação e a saúde, sobretudo nos litígios envolvendo operadoras e beneficiários, nos quais é realmente difícil encontrar o ponto de equilíbrio entre as necessidades destes e o exercício da atividade empresarial por aqueles. Com efeito, a função social do contrato é raramente aplicada em contratos empresariais, ao contrário do que se imaginou ao prever essa situação por meio da MP 883. Esta não tem sido admitida para isentar o devedor de cumprir com sua obrigação, tampouco para aliviar o adquirente de bens de consumo com os quais conseguiria sobreviver sem tê-los.
Ao estatuir-se no artigo 3º, V, da MP 881 que existe presunção de boa-fé no exercício da liberdade contratual, salvo disposição expressa em contrário, não se diz absolutamente nada, até porque a máxima de que “a boa-fé se presume”, amplamente repetida sem maiores reflexões, é aplicável em matéria possessória no Direito francês e não mais em qualquer outra parte do Direito.
Ainda em se tratando da liberdade de definir o conteúdo do contrato, a MP 881 alterou o artigo 423 do Código Civil, que trata dos contratos de adesão. Substituíram-se as palavras “ambíguas e contraditórias” pela expressão “que gerem dúvida quanto à sua interpretação”. Em princípio, o conteúdo da norma também continua sendo o mesmo. Inseriu-se parágrafo único a esse artigo, estabelecendo que, em contrato de adesão, far-se-á a interpretação desfavorável ao estipulante da cláusula. Considerando que o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 54, tem disciplina específica e minuciosa sobre esse assunto, parece que a intenção era regular, nesse aspecto, os contratos empresariais de adesão, como aqueles de fornecimento, franquia, concessão e distribuição. A despeito da importância dessa proteção legal no texto do Código Civil, sempre se entendeu, todavia, que contratos de adesão são sempre interpretados em desfavor de quem o estipula, o que tornaria desnecessária essa inserção legislativa.
A MP 881 inseriu, como parágrafo único do artigo 421, o denominado “princípio da intervenção mínima do Estado” por qualquer dos seus Poderes em matéria contratual e definiu que a revisão contratual se dará apenas em caráter excepcional. Como se sabe, a revisão contratual, que é o contraposto da força obrigatória dos contratos, não era aceita legalmente em boa parte do século XX. Seguia-se àquela época o paradigma a racionalidade plena dos agentes econômicos. Admitia-se que os contratantes sabiam o que faziam e o avençado entre eles era o que verdadeiramente desejavam; caso contrário, não teriam concordado com o fato.
Na França, para corrigir essa rigidez, desenvolveu-se a teoria da imprevisão. Na Alemanha, por sua vez, Windscheid era o defensor da teoria da pressuposição, a qual permitia alterações no negócio jurídico. Quando este jurista finalmente se deu conta de que sua teoria não seria adotada pelo Código Civil alemão, fez a profecia de que esta “entraria pela janela”. De fato, assim aconteceu, pois foi necessário usar o parágrafo 242 (cujo equivalente no Brasil é o artigo 422 do Código Civil) para corrigir essas situações de desequilíbrio contratual e desenvolver a teoria da base do negócio por juristas, como Oertmann e Larenz. A propósito, essa dificuldade somente foi superada em 2002 com a Schuldmodernisierungsgesetz.
No Brasil, antes de se legislar sobre revisão contratual, os tribunais recebiam ações de com fundamento na existência da inflação. Merece destaque o ocorrido em janeiro de 1999 com a desvalorização do real. Vale destacar que Constituição Federal estabelece a defesa do Consumidor pelo Estado, na forma da lei, como um direito fundamental da pessoa (artigo 5º, XXXII) e o Código de Defesa do Consumidor estabelece como direito básico do consumidor, no artigo 6º, V, “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”, além da possibilidade de decretação de nulidade de pleno direito das cláusulas abusivas, conforme disposto no artigo 51. O Código Civil de 2002 adotou a possibilidade de resolução por onerosidade excessiva no artigo 478 do Código Civil e previu-se a renegociação do contrato no artigo 480, por meio de um hardship judicial.
Na prática, não são facilmente aceitas as revisões contratuais entre partes iguais, de modo que a MP 881 só ratifica o que se pratica nos tribunais brasileiros. Dentro do contexto de liberdade contratual já existente no Direito brasileiro, não havia a proibição da adoção de parâmetros objetivos de revisão contratual, conforme se estatuiu pela MP 881, com redação redundante, acerca do disposto nos novos artigos 480-A e 480-B do Código Civil. Aliás, esse expediente é usado em todos os contratos de execução continuada, quando se estipulam cláusulas de reajuste anual dos valores das prestações para fins de correção monetária.
Assim, a MP 881 não afeta as relações regidas pelo Código de Defesa do Consumidor, nas quais o juiz continua com poderes para interferir nos contratos, rever desequilíbrios, reduzir cláusulas abusivas, invalidar estipulações ilícitas e integrar lacunas. Inclusive a Constituição da República Federativa do Brasil estabelece como garantia individual no artigo 5º, XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
A MP 881 acrescentou ao Código Civil o fundo de investimento sob a forma de condomínio, embora nem mesmo esteja no capítulo relativo a essa matéria. Estabelecida a sua natureza jurídica como espécie de propriedade — portanto, um direito real nos termos do artigo 1.225, I, do Código Civil —, a este se deveria aplicar o respectivo regime jurídico desse direito. Sendo agora o fundo de investimento um condomínio, inevitáveis as dúvidas relativas à submissão dos fundos de investimento às regras gerais previstas para o condomínio voluntário, previstas nos artigos 1.314 a 1.326 do Código Civil, as quais, evidentemente, são incompatíveis com o que se pretendeu regular.
Por fim, não se pode esquecer o fato de que declarações de direitos são textos fundamentais do direito. Reverberam por séculos e ensejam a reflexão sobre a existência de um Direito natural, que transcende o Direito positivo. Veja-se a Magna Carta de 1215, a Declaração de Direitos da Virgínia de 1776, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. No Direito Constitucional, o artigo 179 da Constituição do Império, de 1824, já declarava as liberdades fundamentais, o que era um avanço para a época. Isso foi repetido em todas as Constituições brasileiras e, na vigente Constituição Federal de 1988, foram afirmadas logo nos primeiros artigos. As Constituições do México de 1917 e a alemã de 1919 traziam regras sobre a intervenção do Estado na economia. Essa ideia foi incorporada na Constituição brasileira de 1934 e mantida nas demais Constituições. No artigo 170 da Constituição Federal de 1988, tem-se uma verdadeira declaração de direitos de liberdade econômica, a qual impediu graves desmandos no âmbito da economia ao longo de seus 30 anos de vigência.
Logo, causa estranheza a edição de uma “declaração de direitos” por medida provisória. A reforma trabalhista se deu por tramitação de projeto de lei. A reforma da Previdência e o “pacote anticrime” foram encaminhados ao Congresso Nacional para debate. Caso essa MP 881 não seja aprovada pelo Congresso Nacional, ter-se-á, na história do Direito, a primeira declaração “efêmera” de direitos, ainda que restritos à atividade econômica. Não bastasse isso, diante da inconveniência de se alterar desnecessariamente importantes institutos jurídicos, importa fazer a pergunta: o que fizeram com o Direito Civil?
Eduardo Tomasevicius Filho é professor associado do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP.