Alceu Valença, mestre violeiro das terras ao norte do São Francisco, lembrou-se semana passada da noite em que compôs Táxi Lunar. O meu conterrâneo regional deu-se conta de que a vida ficará muito deprimente quando se acabarem os conceitos.
Quando tudo puder ser dito sem limites; quando a ignorância finalmente perder a modéstia; a liberdade de brandir um “eu tenho certeza” servir de pia batismal para a estupidez; quando os parâmetros da verdade forem abandonados, o mundo será triste. Seremos todos tais e quais o garçom de Juazeiro, descrente da ida do homem à Lua. Aí o Papa será comunista, a Terra será plana, o nazismo será de esquerda, Fukuyama será apaixonado pelo Estado e as Universidades serão desprezíveis. Nesse momento, as leis penais serão um conjunto de tweets e postagens e as redes sociais terão ocupado a posição de legisladores!
O mundo não será apenas triste e deprimente: será assustador e perigoso.
Os juízes com suas decisões fazem parte do mundo.
Há dois problemas inerentes à frequência de magistrados em Facebook, Twitter, ou quejandos, fora do espaço de produção de conhecimento, e para além das relações sociais frugais. Dito de outra maneira, o ato de hipotecar apoio a compreensões ideológicas — a jusante ou a montante — revela duas sortes de consequências: em primeiro lugar os juízes tomam partido de lutas políticas e, portanto, expressam previsibilidade quanto às suas decisões futuras. Viram parte sociologicamente interessada. Fazem isso num momento delicado em que as questões de direito penal estão mais epidermicamente intrincadas com a política. E em segundo lugar passam a decidir conforme o entender majoritário da democracia dos alienados, dos perdidos nas redes sociais e unidos por alguma última neurose construída no último tweet, de um milhão de curtidas!
Ambos os processos conjugados geram o que os antigos — do tempo em que grupos de WhatsApp eram cadeiras na calçada — chamariam de “fulanização da profissão.”
A lei existe como parâmetro de decisão e os fatos como pressuposto de realidade para decisões sobre estes mesmos fatos. Argumentar sobre questões de fato e argumentar sobre postulados legais é atividade jurídica, e não surge automaticamente da cabeça das pessoas diante de um smartphone. A atividade de dizer o direito obedece a parâmetros de verdade consensual. A resposta jurídica surge exatamente dos fatos e dos textos legais. Quando a terra pode ser plana e podemos achar que a circunavegação é crime, o direito já não existe mais.
Juízes que se rotulam a si mesmos quando escrevem e juízes que são a expressão da patuleia da rede, nela incluídos os robôs, são o iminente e mais potente perigo ao mundo liberal e à democracia!
Explico:
Dona Maria, batendo bolo às quatro da tarde de um sábado, ouvindo sua rádio preferida noticiar quem foi preso e quem foi solto, tem o fundamental direito de crer que todo político é bandido, todo juiz que o solta é corrupto. Ela também possui o direito subjetivo de não saber a diferença entre prisão cautelar e execução de pena.
Antes, dona Maria reclamava daquilo que cria ser um absurdo no salão de beleza e era acompanhada na irritação por cinco ou seis amigas de bobes na cabeça. Mesmo que bradasse um absurdo racional.
Hoje, a igual irritação de seu João — aumentada porque a cerveja não gelou direito — não é expressada só no balcão do bar do Zuza, acompanhada por um brinde. É gritada na rede mundial que envolve centenas e milhares de Zés e Marias. Nenhum deles nunca abriu um livro de direito e todos eles juntos já soltaram Barrabás, já fizeram a “Revolta da Vacina” e já aplaudiram Mussolini e foram com Hitler à guerra. E nesses momentos históricos não havia internet. Nos tempos que correm, eles fazem uma onda, criam um efeito manada e os juízes, ao ouvirem a “voz das ruas”, arriscam confundir barro com barril, calçada com beiral e meio fio com fio elétrico.
Isso tem acontecido todos os dias! Essa forma de julgar questões — principalmente criminais — é uma grave ofensa ao liberalismo, à democracia e à racionalidade.
Quando a visão de mundo desconectada de parâmetros de realidade ou de veracidade científica contamina os juízes e funciona como maré de sizígia sobre as atividades dos julgadores, a impressão que temos é que estamos mergulhados numa epidemia de realidade paralela. Uma cegueira coletiva que já não é mais ensaio, mas um longa metragem para além de Saramago. “Os fatos que estão no processo pouco importam”; “o que diz a lei pouco se me dá!”
A onda desloca o pensar dogmático e científico da analítica escrutinação dos fatos e da dimensão semântica das normas para o sentir e o pensar das redes sociais! Juízes há que julgam conforme a expressão que as redes sociais dão ao fato! Conforme sua moralidade e sua valoração! É a onda; é a maré de sizígia; é o efeito manada.
É uma seriíssima e enorme ameaça ao estado de direito, ao liberalismo e à democracia o que alguns — juízes de profissão — fazem por vezes, nesse momento histórico.
As redes sociais não formam; apenas informam! O YouTube não ensina; só diverte; o Twitter é apenas um termômetro de sensações, jamais uma rede de construção de conhecimento.
Quando nos expressamos nas redes sociais, cremos estar realizando o princípio constitucional da liberdade de expressão. Mas talvez estejamos ajudando a desconstruir a instituição responsável por esta mesma liberdade de expressão. Quando julgamos conforme o desejo das redes sociais, acreditamos que estamos sendo efetivamente democráticos por ouvirmos a maioria, mas no fundo estamos destruindo a própria democracia.
Só a coerência nos salvará!
Quando a maré baixar, a onda quebrar, a manada dissolver-se nas pradarias, então será a hora de recolhermos os corpos da coerência. Será o caso de torcermos para os cadáveres em decomposição não terem ocupado todo o solo, matado as flores que teimam em crescer no jardim.
Com o velho Alceu, escrevo para dizer que ainda é tempo de Anunciação; para dizer que ainda é possível desejar ver a coerência chegando para brincar, para nossa felicidade, nos nossos quintais.
Ney Bello é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, professor da Universidade de Brasília (UnB), pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.