Tese de que ao Estado cabe o papel de criar mecanismo de caridade para os trabalhadores é mais um dos argumentos falaciosos dos defensores da “reforma” da Previdência Social.
Por Osvaldo Bertolino
Em sua coluna no jornal O Globo da quarta-feira (10), Merval Pereira, tido como um dos mais influentes analistas políticos da mídia, escreveu que o famoso economista John Maynard Keynes foi um autêntico liberal — ou neoliberal, como se diz hoje em dia. Ele se apoia num artigo do economista José Roberto Afonso, considerado um dos maiores especialistas em finanças públicas do país, publicado na Revista do BNDES, que trata de uma questão colateral à reforma da Previdência que se tornará crucial para desenvolvimento do país — o emprego.
O título da coluna — Para além do emprego — chama exatamente para essa questão. Segundo a peculiar cartilha de Merval Pereira e de José Roberto Afonso, a “reforma” da Previdência é necessária, mas insuficiente para lidar com um futuro em que cada vez mais o trabalho não passará por emprego e salário. O economista ressalta, de acordo com Merval Pereira, que financiar e manter a seguridade social que tinha essas premissas — emprego e salário — é um debate crescente no mundo, que o Brasil ignora e do qual não participa.
Carteira de trabalho
O colunista assevera que até o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial já alertaram que será preciso um novo pacto social, citando José Roberto Afonso. No artigo, segundo Merval Pereira, ele volta ao economista John Maynard Keynes, que foi a base de seu doutorado na Unicamp, mas analisando aspecto que poucos conhecem: ele ajudou a estruturar o chamado estado do Bem-Estar Social, na década de 30 e 40 na Inglaterra, depois copiado pelo resto do mundo, inclusive o Brasil.
Não é possível quantificar o conhecimento sobre essa informação, mas certamente não são poucos — o chamado keynesiasimo deu base teórica ao fordismo, à social-democracia, ao New Deal do presidente norte-americano Franklin Delano Roosevalt e, dentre outras experiências históricas, a muito do que existe na legislação social brasileira.
Mas, prossegue Merval Pereira, José Roberto Afonso lembra que a rede de proteção social adotada em meados do século passado girava em torno do emprego, formalizado no Brasil pela contratação com carteira de trabalho assinada. Empregadores e empregados contribuem sobre o valor de seus salários, que também passa a balizar os benefícios pagos no futuro (aposentadoria), ou antes, em caso de alguma intempérie (uma delas é o seguro-desemprego).
Paradigma quebrado
O economista adverte, de acordo com o colunista de O Globo, que esse paradigma está sendo quebrado pela revolução em curso, na indústria, na economia e na sociedade, que compreende, entre outros fatores, uma intensa automação do processo de trabalho, substituindo trabalhadores por robôs, a economia compartilhada e a do “bico”, com trabalhadores exercendo suas funções sem vínculo contratual, físico e temporal.
Cada vez mais, segundo o economista citado, trabalho não representará, necessariamente, emprego. Os países precisarão construir um novo pacto ou contrato, social e também econômico, para lidar com essa realidade. Ele cita, possivelmente fora de contexto histórico, que Keynes já alertava que exagerar na tributação de salários desestimularia os empregadores a contratar trabalhadores formalmente. “Qualquer semelhança com a situação no Brasil não é mera coincidência”, ressalta José Roberto Afonso, segundo Merval Pereira.
Para ele, diz o colunista, “é preciso outro arranjo. “A única certeza que se têm é que como se está, não mais ficará”, sentencia o economista, conforme a informação de Merval Pereira, complementando que José Roberto Afonso afirma que, na contramão do que os últimos governos têm feito, é fundamental fortalecer arranjos como o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que tem sido desidratado, “não apenas porque o desemprego vai explodir, mas porque é urgente retreinar e requalificar mão-de-obra”.
Sistema de ensino
Para ele, de acordo com o colunista, até mesmo o lado SENAI/SENAC deveria ser prestigiado. Segundo o economista, “não é a educação que resolverá o desafio, mas habilidades”. A Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne os países mais desenvolvidos do mundo, que o Brasil almeja integrar, tem batido muito nessa tecla, teria lembrado o autor do artigo na Revista do BNDES.
Melhorar o sistema de ensino, para conseguir colocação aos futuros trabalhadores, é fundamental, mas, para José Roberto Afonso, “será premente também mudar as qualificações de quem já está dentro do mercado de trabalho”. A rede de proteção social aos trabalhadores gira em torno do emprego, e os salários são o referencial, seja para cobrança de contribuições sociais, seja para pagamento de benefícios, como seguro-desemprego e aposentadoria.
Segundo Merval Pereira, José Roberto Afonso assegura que “essa construção será abalada pela revolução econômica e social, que passará pela automação do processo de trabalho e a expansão do trabalho independente”. A realidade nova forçará a renovação do pacto social brasileiro, de modo que o amparo ao trabalhador deverá assumir outras formas que não apenas a carteira assinada, e revisitar o esquema de financiamento aos investimentos.
Caráter contribuitivo
De acordo com o colunista, para fomentar esse debate o artigo de José Roberto Afonso resgata as lições de Keynes “para iluminar as reformas necessárias para enfrentar o futuro”. Ele chama a atenção para o fato de que quando se examinam as atividades de Keynes entre as vésperas da Segunda Guerra Mundial e os primeiros anos seguintes, “constata-se que deu grande atenção aos gastos sociais e ao orçamento público, em especial, no âmbito de suas atividades como conselheiro governamental”.
Keynes classificou como ficção o caráter contributivo do sistema, pois seria preciso custear mais do que benefícios ligados diretamente ao trabalhador. Os serviços de caráter geral (como os de saúde) e os eventuais déficits do sistema precisariam ser cobertos pelo Estado — ou, melhor, pelos contribuintes em geral e com recursos oriundos de impostos. “Como acontece hoje entre nós”, deduz Merval Pereira.
O que isso tudo significa não ficou claro. Mas é possível concluir que o trabalhador brasileiro em geral, de agora em diante, principalmente se a “reforma” da Previdência Social for aprovada, terá de sobreviver de caridades. Ainda de acordo com Merval Pereira, o artido de José Roberto Afonso fala de uma proposta keynesiana de um fundo composto pela arrecadação das contribuições (fixadas a cada quinquênio) custearia os serviços médicos, os benefícios de assistência (exceto para crianças) e as pensões (exceto dos ex-combatentes de guerra).
Como não conseguiu aprovar um projeto de reforma tributária para aumentar a arrecadação, Keynes contentou-se com mudanças que reduziram a despesa pública futura, “como poderá fazer o ministro da Economia Paulo Guedes”, conclui Merval Pereira.
Grande Depressão
É preciso lembrar que em plena crise grave nos Estados Unidos, que arrastou o mundo para a mais sinistra depressão da era moderna, Keynes publicou o livro A Teoria Geral da Moeda e do Emprego, que iria alterar profundamente o modo como os governos regulariam a política econômica. Inspirado em seus ensinamentos, pouco meses após ser eleito o presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, decretou o primeiro de uma série de programas legislativos para “salvar os Estados Unidos do desemprego”.
A Lei de Recuperação da Indústria Nacional (NIRA) tinha como meta empregar milhões de trabalhadores. O compromisso da administração do New Deal era utilizar mais mão-de-obra do que materiais e máquinas, e desprezar grandes investimentos de capital. Roosevelt dizia que a causa principal da Grande Depressão era que a renda dos consumidores não havia aumentado o bastante para tirar os produtos do mercado.
A ideia básica do New Deal, segundo o historiador Benjamim Hannicutt, “era tirar dinheiro dos ricos, que tenderiam mais a acumulá-lo, e dar mais dinheiro à classe média, à classe operária e aos pobres, cuja tendência seria maior em gastá-lo, estimulando, com isso, as vendas e o crescimento econômico”.
Ex-comunista
Na Europa, o projeto social-democrata, também de base keynesiana, procurou adaptar a economia planejada à tradição comercial liberal do velho continente. Essa ideia começou a fazer água com a tática de muitos social-democratas de reavaliar suas posições políticas para agradar a um “eleitorado mais amplo”, uma posição que passou a ser chamada de neoliberalismo com discurso de esquerda.
Na Itália, essa constatação ficou nítida: o governo do “ex-comunista” D’Alema chegou ao ponto de passar por cima de uma das mais importantes conquistas democráticas, a proibição constitucional de participação do país em guerra ofensiva, ao participar ativamente do ataque à Sérvia.
O aspecto mais importante a se ressaltar, no que diz respeito aos países de regime capitalista, é o caráter antiliberal das políticas keynesianas e social-democratas. Um novo papel foi conferido ao Estado, agora concebido como agente principal da reconstrução econômica, indutor do desenvolvimento e figura central para a distribuição da riqueza produzida.
Trabalho social
Com isso, a intervenção estatal direta e indireta foi legitimada e os valores igualitários, tais como justiça social e solidariedade, passaram a compor a agenda pública. A social-democracia, tornada reformista e keynesiana, salvou o capitalismo. Aos liberais, restou o caminho da oposição. A pequena audiência que encontraram, por décadas a fio, não os esmoreceu.
A situação do liberalismo permaneceu relativamente inalterada até meados dos anos 70, quando uma série de fatores progressivos e combinados começou a solapar o que até então permitira o êxito das ideias antiliberais. Estes fatores são, basicamente, os dois choques do petróleo, o aumento da inflação pela quebra do ciclo crescimento/distribuição de renda e a reestruturação produtiva promovida pela Terceira Revolução Industrial.
Esta, ao diminuir a quantidade necessária de trabalho social à produção, enfraqueceu brutalmente o poder dos sindicatos — até então partícipes da estrutura social-democrata. O ressurgimento da força dos liberais também contou com a débâcle das experiências socialistas. A ascensão de líderes como Margareth Thatcher (1979) na Inglaterra e Ronald Reagan (1980) nos Estados Unidos representou, portanto, a chegada ao poder de antigos liberais oposicionistas. Isso fez com que houvesse o predomínio de uma “nova direita”, o neoliberalismo, com enorme capacidade de expandir ideologicamente sua visão de mundo.
Pensamento autoritário
No Brasil, essa ideia chegou no final dos anos 1980, nos estertores do governo do presidente José Sarney, ensaiou um passo ousado com a eleição de Fernando Collor de Mello em 1989 e se estabeleceu na “era” Fernando Henrique Cardoso (FHC). Interrompida pelo ciclo de governos dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, ela voltou com força depois do golpe de 2016. Agora, como escreveu Merval Pereira, cabe ao ministro da Economia Paulo Guedes consolidar a sua retomada. A questão é que não há como fazer isso sem as vias do autoritarismo, a negação dos canais de manifestações democráticas do povo trabalhador.
Como escreveu o ex-ministro da área econômica na ditadura militar, Delfim Netto, em sua coluna no jornal Folha de S. Paulotambém na quarta-feira (10), referindo-se à tumultuada e recente visita do ministro da Economia à Câmara dos Deputados, “a nossa esquerda, perdida, recusou, no grito, que Guedes pudesse esclarecê-la”. É a retomada do pensamento neoliberal, com suas conhecidas pretensões à univocidade, inclusive no seu aspecto autoritário, como se não houvesse salvação fora dos seus cânones e dogmas, uma vocação ditatorial para ser o pensamento único na economia.