“O que a população precisa saber é que essa reforma é profundamente injusta e que o dinheiro que se quer economizar vai sair dos mais pobres”, diz Sonia Fleury, pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.
Por Eliane Bardanachvili, do CEE Fiocruz
A política de Previdência que um governo leva à frente não se resume a concessão de benefícios. Mais do que isso, expressa um projeto de construção de sociedade. Nesse sentido, a Proposta de Emenda Constitucional da Reforma da Previdência, PEC 06/2019, enviada ao Congresso pelo governo em fevereiro, aponta para uma sociedade injusta e excludente, em que os mais pobres serão penalizados. A análise é da sanitarista Sonia Fleury, pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, que desde 1978 trabalha com o tema da Previdência Social, examinando seus aspectos políticos, sociais e econômicos.
A PEC, explica Sonia, torna constitucionais medidas que vão na contramão da proposta de seguridade social. A mais impactante delas é a capitalização. “A capitalização é um modelo oposto ao da seguridade. Não é solidário em nada. Você tem uma conta individual, e vai capitalizá-la durante a vida inteira”, explica. “Se o empregado não conseguir capitalizar, problema dele”, destaca a sanitarista nesta entrevista para o blog do CEE-Fiocruz.
À frente de um grupo de pesquisa no Centro, sobre o futuro da proteção social, Sonia vem buscando analisar a PEC e seus impactos [acesse o estudo aqui]. Entre os muitos dados que levantaram, chama atenção que, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad/IBGE), de 2017, há 30 milhões de pessoas vivendo em famílias nas quais 50% ou mais da renda provêm de aposentadoria ou pensão. Isso significa que a ausência desses recursos representará aumento da pobreza, com impacto direto no mercado interno e redução no crescimento econômico. “O que a população precisa saber é que essa reforma é profundamente injusta e que o dinheiro que se quer economizar vai sair dos mais pobres”, diz Sonia.
Leia a entrevista a seguir:
CEE Fiocruz – No que diz respeito à proteção social, que impressões gerais é possível destacar a respeito da PEC da Reforma da Previdência?
Sonya Fleury – Uma proposta de política para a Previdência de um governo tem impacto geral sobre a qualidade de vida da população e define que tipo de sociedade queremos construir. Não se trata só da concessão de um benefício, mas de um projeto de construção de sociedade. A proposta de política que se tem define a sociedade que se quer criar.
E nesse caso, para que tipo de sociedade se está apontando? Conforme vocês destacam no levantamento que fizeram, houve outros momentos em que foram tomadas medidas de contenção de recursos relativos à Previdência – criação do teto para os benefícios do regime geral, fator previdenciário, teto para o funcionalismo público, entre outras. Em que a PEC 06/2019 diferencia-se dessas medidas anteriores?
Fizemos um texto, eu e [a pesquisadora] Rosangela Alves, Reforma previdenciária no Brasil em três momentos (2004), em que tomamos como a principal reforma a própria Constituição de 1988. Ela faz mudanças profundas, no sentido de construção da seguridade social, que desvincula o benefício da contribuição o mais possível. Se a pessoa não dá conta de contribuir para ter um benefício mínimo, a sociedade vai garantir isso. A seguridade cria várias fontes de financiamento, diversificadas. Há toda uma construção que vai do padrão do benefício à institucionalidade do financiamento. Dentro da perspectiva da seguridade, identificamos duas outras reformas, no governo Fernando Henrique Cardoso [Emenda Constitucional nº 20, de 1998] e no governo Lula [Emenda Constitucional nº 41, de 2003], já com uma preocupação quanto à estabilidade financeira. No governo Fernando Henrique, criam-se regimes diversificados para a Previdência – regime geral [que abarca a população em geral, como os trabalhadores da iniciativa privada e os contribuintes individuais], regime próprio [que abarca os servidores públicos titulares de cargo efetivo, cuja previdência, até então, era parte dos custos administrativos da União], militares e previdência privada complementar. Cria-se também um fator previdenciário, que vai indicar o valor do benefício em função da expectativa de vida e do tempo de contribuição. Posteriormente, no governo Lula, busca-se uma reforma mais no setor público, no regime próprio. Estabelece-se um teto para o benefício, que se iguala ao do regime geral, e cria-se a previdência complementar. Essa proposta é de 2003, e só em 2012 virou lei, entrando em vigor a partir de 2013. Foram dez anos de disputas. A lei não pegou de imediato. Mas essas reformas não alteraram a seguridade social, não romperam com a ideia de um sistema solidário. Ao contrário, buscou-se incluir outros grupos, dentro da ideia de previdência universal.
O objetivo não era desmontar o que havia…
Sim, era dar viabilidade financeira, sem romper com modelo. Claro que houve medidas que se mantêm até agora e que são um fator de complicação, como a DRU [Desvinculação dos Recursos da União], iniciada no governo Fernando Henrique Cardoso, que libera recursos constitucionalmente dedicados à seguridade social para o governo usar como quiser. Isso vem desde o Plano Real, como parte da proposta de estabilização da moeda e, de tempos em tempos, se renova, deixando de trazer, claro, mais recursos para a área social. Nos últimos governos do PT também houve uma política econômica bastante prejudicial à seguridade, que concedeu isenções de tributos para grupos empresariais, como os fabricantes da linha branca[eletrodomésticos, como geladeiras e máquinas de lavar], para favorecer o consumo da classe C. Outros grupos passaram a fazer pressão e foram obtendo essas isenções também. O IPI dos produtos industrializados e outros impostos que deveriam vir para a seguridade não vieram. Só que nada disso quebrou a espinha dorsal da seguridade social, que é solidária, desvincula contribuição de benefício, é inclusiva e com perspectiva de redistribuição. A literatura chama essas reformas de paramétricas, isto é, elas mudam os parâmetros apenas – tempo de contribuição, valores, fórmula de cálculo, tempo para aposentadoria. Não são reformas estruturais.
Essa reforma que a PEC prevê tem caráter estrutural?
Sim. Essa agora é uma reforma estrutural. Apesar de se manter um sistema de contribuições e benefícios com mudanças paramétricas, no que diz respeito a idade e fórmula de cálculo, ela constitucionaliza a alternativa da capitalização. A capitalização é um modelo oposto ao da seguridade. Não é solidário em nada. Você tem uma conta individual, e vai capitalizá-la durante a vida inteira. É um modelo de contribuições definidas e não de benefícios definidos, como o da seguridade social, em que se contribui a vida inteira e se sabe no final que haverá um recebimento determinado. No modelo de capitalização, é o contrário: você tem definido quanto tem que depositar por mês, mas não sabe quanto vai receber no final.
Do que dependerá esse recebimento?
Essa não é uma política pública no sentido da redistribuição. É a pessoa que acumula, é uma conta do empregado. Se esse empregado não consegue capitalizar o mínimo para ter depois um benefício também mínimo, problema dele. E quanto mais tempo a pessoa viver, pior, porque se o dinheiro acaba antes, ela fica na miséria. No Chile, havia uma classe média que virou pobre, depois que se aposentou. Isso acabou gerando custos para o Estado, uma crise. São empresas que recebem o recurso da contribuição e vão aplicar, cobrando seus custos para isso. Você fica à mercê do mercado financeiro. No caso do Chile, supunha-se que as empresas iriam competir entre elas e, com isso, os custos administrativos cairiam. Mas, em vez disso, uma empresa foi comprando a outra, elas viraram um monopólio e não houve concorrência alguma. Os cursos administrativos foram altíssimos sempre.
Há um estudo da OIT mostrando que de 30 países que privatizaram seus sistemas de previdência, entre 1981 e 2004, 18 já reverteram a medida. Como isso pode ser levado em conta no caso brasileiro?
Foi feita o que chamam de uma re-reforma, que começou principalmente em 2008, com a crise do capitalismo financeiro. Esse modelo de privatização de previdência é completamente sensível ao mercado financeiro, pois é no mercado, com todos os riscos de instabilidade, que se aplicam as contribuições. É uma financeirização da política social. É preciso perguntar a quem fez a PEC por que não considerou a experiência internacional, por que essas informações não foram trazidas para uma discussão. Como é que se faz uma proposta dessa, sem colocar isso na mesa? Por que insistir em algo que está dando errado no mundo inteiro? E há o custo muito alto de transição do modelo de repartição para o de capitalização, no sentido de que as pessoas que têm mais dinheiro vão capitalizar. E quem vai pagar para quem não tem condição? Nos casos como o das mulheres que entram e saem do mercado com muita facilidade, para cuidar de filhos, ou de pessoas sem qualificação, sempre os primeiros a serem mandados embora, entre outros, não se consegue juntar o suficiente para ter uma aposentadoria. O grande passo para trás é vincular o benefício ao salário, quando a coisa mais escassa hoje é salário e emprego formal. A seguridade tinha tentado romper parcialmente com isso. Agora que estamos no momento da indústria 4.0, em que milhões de empregos vão acabar, com uma alteração enorme da dinâmica de trabalho, essa reforma olha pelo retrovisor, e não para a sociedade que está se construindo.
É um ciclo que não fecha. Vai se dificultando ou se criando um desinteresse pelo investimento na previdência pública…
A ideia é extinguir a previdência pública. Não há redistribuição. Os que podem muito capitalizam no mercado financeiro. Quem não tem vai depender do que conseguiu contribuir.
A senhora chama atenção para as consequências do aumento do tempo de contribuição para 20 anos que consta da PEC, considerando que não está sendo discutido como deveria. Por quê?
Por exemplo, as mulheres que se aposentam hoje fazem isso com tempo de contribuição menor do que esse que está sendo proposto. Em 2014, cerca de 26,7% se aposentaram com até 15 anos de contribuição, e 44%, com até 19 anos. Ou seja, mais da metade das mulheres não chegariam aos 20 anos pelas novas regras. Elas se aposentam por idade, e não por tempo de contribuição. E há outras coisas absurdas na proposta, como a restrição do abono salarial do PIS/Pasep apenas a quem recebe um salário mínimo e não mais até dois salários. Há milhões de trabalhadores pobres que deixarão de receber esse 14º salário. Outra coisa, ainda, é a fórmula de cálculo do valor da aposentadoria por invalidez, em que o recebimento de 100% do valor só é possível se o acidente decorrer de atividade de trabalho. Se não, são apenas 60%. Um senhor de idade que se acidenta e já trabalhou quase a vida inteira pode ser que chegue perto de cem por cento. Mas um jovem que se acidenta e não pode mais trabalhar, vai ganhar 60% de aposentadoria. É um dos grandes ataques à seguridade social. A Constituição afirma que nenhum benefício pode ter valor mensal inferior a um salário mínimo [artigo 201, parágrafo segundo]. Mas com essas contas da PEC, pode-se ficar só com 60%.
Toda a economia que se diz que a PEC vai propiciar, na verdade, será às custas de quem mais precisa…
É o maior confisco sobre a economia popular e sobre os direitos sociais. Retira direitos e dinheiro dos mais pobres. Saiu uma matéria na imprensa mostrando que, com a crise, o desemprego e os salários baixos, os benefícios têm peso cada vez maior na renda familiar. Tirar os benefícios transforma as pessoas em miseráveis. A PEC desconstitucionaliza benefícios e direitos e torna constitucional a capitalização.
Isso tem impacto na economia do país também, não?
Em 61% dos municípios brasileiros, as transferências de recursos feitas pelo INSS superam os valores transferidos por meio do Fundo de Participação Municipal. A economia de grande parte dos municípios vive, então, em função dos benefícios recebidos pela população. Os municípios menores ficam esperando o dia de pagamento do benefício da Previdência, porque é nesse dia que as lojas vendem. Os prefeitos sabem disso.
Há tempo para que essas questões cheguem à população e aos gestores e seja discutida?
A PEC ainda não entrou em discussão no Congresso. Há um caos geral para se conseguir formar uma coalisão mínima para aprovar. O presidente tem posição completamente ambígua, o que ficou claro na concessão feita aos militares, enquanto todos estão com uma cota de sacrifício altíssima. Ainda tem muita coisa para rolar. São muitas tensões, muitos regimes, muitos percentuais. O que a população precisa saber é que essa reforma é profundamente injusta e que o dinheiro que se quer economizar vai sair dos mais pobres.
Fonte: CEE Fiocruz, via Diálogos do Sul