Em cidade onde Bolsonaro venceu nos dois turnos, muitos defendem o mantra de ‘menos direitos, mais empregos’
Fábio Zanini
Grandes outdoors anunciando jeans, roupas de praias e vestidos dão as boas-vindas a quem chega à região de Santa Cruz do Capibaribe, no agreste pernambucano.
As fotos de modelos de semblante blasé pipocam nesta cidade a 45 km de Caruaru, centro de um polo de confecção que reúne 54 municípios e emprega 150 mil pessoas.
Muitos dos habitantes do lugar se orgulham de ter o DNA do empreendedorismo e seguem à risca o mantra do governo de “menos direitos, mais empregos”.
Em Santa Cruz, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) venceu nos dois turnos a eleição presidencial, única cidade pernambucana em que isso ocorreu (teve 54% na etapa final).
A carteira verde e amarela que o ministro da Economia, Paulo Guedes, pretende implementar já tem uma espécie de projeto-piloto na região.
A informalidade no mercado de trabalho é de cerca de 80%. Não há estatísticas confiáveis sobre emprego, mas na região se repete a todo tempo que só não trabalha quem não quer.
Milhares de moradores das cidades que orbitam Santa Cruz se dedicam à confecção em fabriquetas de fundo de quintal, muitas vezes em suas próprias casas. Elas são chamadas de “facções”.
Com duas ou três máquinas ao custo médio de R$ 3.000 uma nova (metade se for uma usada em bom estado), já podem produzir. Algumas “facções” se dedicam a cortar tecido; outras, a costurar, tingir ou ao “aprontar” o produto (colocar zíperes e bolsos).
Depois de mais do que dobrar na década até 2015, o polo sofreu com a crise e encolheu 2% nos dois anos seguintes. No ano passado, estima-se que tenha crescido 2%, e para 2019 a previsão é que esse índice acelere para entre 3% e 4%.
Muitas das fabriquetas são núcleos familiares, trabalhando em casa por encomenda. Outras têm até 20 funcionários, todos em jornadas de até 14 horas por dia, sem registro em carteira. Como diz o dono de uma delas, que pediu para não ser identificado, “se a fiscalização aparecer por aqui, fecha a cidade toda”.
Uma “facção” pode gerar até 400 peças por semana. Pela costura de uma calça jeans, por exemplo, ganha-se de R$ 1 a R$ 1,20, pago pelo contratante do serviço.
Toda segunda-feira, os pequenos fabricantes expõem seus produtos no Moda Center, um pavilhão em Santa Cruz com capacidade para quase 10 mil boxes. O lugar fica abarrotado. Lojistas de diversas partes do país vêm comprar calças, camisetas, roupas de banho, vestidos e lingerie.
Depois de mais do que dobrar na década até 2015, o Moda Center sofreu com a crise e encolheu. Em 2018, veio a recuperação, com crescimento de 7% no movimento. Em 2019, a perspectiva é que o público aumente 10%, chegando a 3 milhões de pessoas.
Um dos boxes é de Pedro José da Silva, 65, ex-lavrador que entrou no ramo da confecção há 20 anos.
O tecido que ele compra vem de Recife, João Pessoa ou Salvador. Com o material em mãos, distribui entre fabriquetas que o cortam, costuram e finalizam. Trabalha com bermudas, calças jeans e camisetas polo e de tactel.
Ele vende por R$ 15 uma bermuda que será comercializada por R$ 25 ou R$ 30 em lojas populares Brasil afora. “Deus plantou a confecção nessa cidade, senão a gente ia estar isolado”, diz. “Na lavoura a gente planta só pra comer, não lucra nada.”
O polo remonta à década de 1960, quando agricultores que sofriam com a seca começaram a trazer retalhos de capitais do Nordeste e fazer produtos simples como panos e toalhas. Com o tempo, a confecção foi se sofisticando.
Em Toritama (40 mil habitantes), a especialidade são as peças de jeans. De lá saem 18% da produção nacional.
Em uma rua sem asfalto, um portão preto de correr se abre e revela um casebre com parede de blocos no fundo de um pátio. Lá moram Gilvan Fernandes, 36, e a mulher, Lucineide da Silva, com duas filhas, de 4 e 14 anos.
No cômodo de entrada, eles têm sua “facção”, com sete máquinas de costura. Chegam a produzir 400 calças por semana. “A gente ganha na quantidade”, diz ele, que chega a obter uma renda de até R$ 3.000 em alguns meses. “Quero chegar a R$ 7.000”, afirma.
O trabalho começa às 8h e costuma passar das 22h. Com sonhos de crescer, o casal de evangélicos criou uma etiqueta para seus produtos, que batizou de Tirza, termo em hebraico que significa “prazer” e está no Antigo Testamento.
Eleitor de Bolsonaro, Fernandes quer que o Estado o deixe trabalhar. “Só espero que deixem a gente livre. O governo, quando fala em incentivo, dá com uma mão e tira mais ainda com a outra.”
Funcionário da Prefeitura de Toritama, Abimael Santos, 34, diz que as pessoas da cidade se sentem sufocadas pelos impostos e pela lei trabalhista. “A população daqui empreende. E quem empreende quer o livre mercado”, diz ele, que durante a campanha animou carreatas pró-Bolsonaro.
O argumento repetido na cidade é que um emprego com carteira assinada rende um salário mínimo. O trabalho informal numa confecção pode gerar o triplo.
“Aqui, além de TV, geladeira e fogão, há uma máquina de costura em cada casa. E muitas vezes uma professora que depois do expediente a utiliza para complementar sua renda”, diz Bruno Bezerra, presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas de Santa Cruz.
Segundo ele, na cidade a formalização do trabalho não é algo visto como indispensável. “As pessoas não falam tanto em emprego formal. Fala em trabalho, em oportunidade.”
Ele refuta, no entanto, a noção de que as condições de trabalho sejam insalubres.
“As condições aqui são certamente melhores que para os bolivianos no Pari [região de São Paulo com alta concentração de confecções]. As confecções ficam dentro de casa. Difícil haver um ambiente insalubre assim”, afirma.
Esse espírito capitalista cobra um preço. Danielle Rodrigues, 30, trabalhou durante nove anos em uma confecção, em jornadas de até 14 horas por dia. “O dinheiro é bom, mas você acaba se tornando escravo da máquina”, diz ela.
Decidiu sair, fez faculdade de administração e hoje é secretária na Prefeitura de Toritama, com horário para entrar e sair e carteira de trabalho assinada.
“Não tenho saudade daquela vida. Mas é uma garantia para um dia que precisar de trabalho”, afirma.
Fiscalizar as pequenas confecções é tarefa das mais complexas, segundo o procurador regional do Ministério Público do Trabalho de Caruaru, José Adilson Pereira da Costa.
A primeira dificuldade é que os trabalhadores muitas vezes não têm interesse em uma relação formal de trabalho. “As pessoas não gostam do Estado, que nunca fez nada por elas”, afirma.
Outro empecilho é o próprio sistema fragmentado. “É difícil identificar essas pequenas fábricas. Muitas ficam em lugares aonde só se chega de moto”, afirma.
Com apenas dois procuradores e dois fiscais, a estrutura disponível não dá conta da demanda.
Nas empresas maiores, diz o procurador, as condições melhoraram nos últimos cinco anos, com maior acesso a condições de segurança e saúde no trabalho e a quase erradicação do trabalho infantil.
Folha de S.Paulo, 08 de abril de 2019