No filme “O Jovem Karl Marx”, o diretor Raoul Peck desenvolveu um projeto para apresentar o lado humano de quem hoje é conhecido como um gênio intelectual e criador de uma doutrina imbatível sobre o sistema capitalista – o marxismo – que é estudada até pelos seus oponentes por expor minuciosamente os fundamentos da organização capitalista que domina o relacionamento internacional mundial mesmo com países socialistas ou que mantêm um regime feudal.
Por Zillah Branco
Vivemos um tempo de afirmação do domínio capitalista com a imposição de formas de exploração que reduzem os trabalhadores à condição de escravos. Os estados ditos democráticos jogam com as leis de modo a solapar os direitos antes alcançados por movimentos sindicais e manipulam as informações através da mídia que divulga as “fake news” como verdades sempre convenientes à elite no poder. Para aprimorar a (de)formação da consciência dos cidadãos, justificam a redução dos recursos para salários e prestação de serviços sociais alegando o “dever de honra” do país saldar as dívidas contraídas com os bancos credores! Além das mentiras que ocultam o desvio dos recursos nacionais (capitalizados como lucros por uma minoria), criam uma “falsa moral” que vai completar a ignorância da realidade, transformada em educação social que aliena a consciência dos individuos.
A técnica aplicada nos recursos informáticos é o exemplo cabal de um modelo imposto, a ser repetida por quem não utilize o próprio pensamento e a lógica do seu raciocínio, formados de acordo com a realidade em que cresceu. Existem regras impositivas para que os programas informáticos respondam às consultas dos internautas e, com grande frequência essas regras são alteradas para obrigar à obediência atualizada. Mesmo os aparelhos deixam de funcionar dentro de um prazo calculado para obrigar à sua substituição, com novo e maior investimento. O capital exige a sua reposição para manter a dependência do utilizador tornado escravo.
A semente transformadora do sentimento humano radica no incentivo ao egoismo para que, ao ficar alienado da sua condição gregária natural, a pessoa deixe de se preocupar com o bem-estar dos que compõem a sociedade, apenas cuidando da forma de relacionamento para utilizar os serviços que lhe prestam como escravos, clientes ou protetores. Teoricamente o estado capitalista deve assegurar essas condições de bem-estar aos cidadãos (egoístas ou não), mas as instituições oficiais tendem sempre a considerar apenas os privilegiados da classe dominante que pagam ou mandam.
A compreensão desse controle absoluto criado pelo sistema capitalista sobre os cidadãos, hoje está bastante generalizada nas diferentes regiões do planeta e independe das crenças e filosofias de vida resultantes do caminho histórico dos seus povos. O domínio do mercado e das informações sociais pelo imperialismo está globalizado.
Em campanha eleitoral a elite social-democrata e demais partidos de direita vestem-se de democratas ou de generosos irmãos de caridade e repetem discursos sobre o Estado de Direito, a igualdade entre cidadãos e o respeito pelas diferenças etnicas, de gênero, de opções religiosas, políticas ou sexuais, enquanto anunciam grandes projetos de desenvolvimento dos serviços sociais de saúde, ensino, previdência, transporte e habitação social, para os quais precisam de investidores para privatizar os serviços que o Estado tem a obrigação de oferecer a todos os cidadãos. Tratam as questões sociais como negócios que fazem crescer as dívidas que o povo terá de pagar submetido a um regime de austeridade.
A história evolui e transforma
No século XVIII, como resultado do desenvolvimento filosófico e científico na Europa, germinava o pensamento humanista em busca da justiça social (que esteve na base da Revolução Francesa que condenou as aristocracias governantes), assim como na origem das várias correntes religiosas que orientavam as investigações filosóficas e a formação cultural dos povos.
Naquele século os trabalhadores e os pensadores humanizados despertaram para a descoberta de que a exploração que escravizava uma maioria de seres e enriquecia uma camada privilegiada
não poderia continuar a ser uma fatalidade imposta por lei divina. As correntes religiosas confrontavam-se e as observações metódicas da natureza por estudiosos, desenvolvia a curiosidade científica libertada das proibições clericais e do medo de assumirem a condução do próprio pensamento. O século XIX leva os estudiosos a recuperarem o conhecimento e as indagações feitas na antiguidade para serem aplicadas aos novos tempos, e os trabalhadores a serem coletivisados na nascente indústria e nas cidades onde ficam amontoados ao serem expulsos do campo. O diálogo impõe-se como compensação e revela identidades e diferenças que sucitam interpretaç?es racionais e gestos afetivos de solidariedade.
A guilhotina era insuficiente para acabar com os donos do poder político, econômico e social, e a miséria agravada nas casas insalubres das cidades exigia soluções científicas e técnicas. O sistema capitalista era organizado de modo a deixar o trabalhador sobreviver para produzir nas suas fábricas, manter em ordem as cidades, servir nos exércitos e junto às famílias de classe mais elevada, deixando os poderosos acumularem a riqueza e gozar a vida prazeirosamente.
Os objetivos da Revolução Francesa apontavam caminhos para libertarem os cidadãos das misérias e da ignorância que constituiam as peias do seu desenvolvimento. A promoção dos princípios de Liberdade, Igualdade e Fraternidade exigia a superação do egoísmo naqueles que tinham privilégios de vida e de formação.
Os contestatários criam associações
O autor do filme “O Jovem Karl Marx”, Raoul Peck (que fora premiado em 1993 ao apresentar o filme sobre Lumumba “Eu não sou o seu negro”), nasceu no Haiti, onde foi Ministro da Cultura, migrou para o Congo e estudou nos EUA, na França e na Alemanha. Neste novo filme desenvolveu um projeto para apresentar o lado humano de quem hoje é conhecido como um gênio intelectual e criador de uma doutrina imbatível sobre o sistema capitalista – o marxismo – que é estudada até pelos seus oponentes por expor minuciosamente os fundamentos da organização capitalista que domina o relacionamento internacional mundial mesmo com países socialistas ou que mantêm um regime feudal.
Procurou destacar na história pessoal – de Marx, Jenny, Engels e Mary Burns – o caminho seguido por jovens imbuidos do desejo de transformar o mundo com a superação da ignorância e das injustiças, revoltados mas firmes nas suas idéias, sem medo de enfrentar os debates, que não medem palavras mas ouvem o outro, abertos à discussão, que radicalizam mas fazem a sua auto-crítica ao conhecerem a realidade em que vive a humanidade. Apresenta as semelhanças com outros jovens que a história vai produzindo, com idêntica responsabilidade social e princípios éticos, que desenvolvem a capacidade de pensar dialéticamente e conhecer a realidade do seu tempo para participar na luta pela transformação mundial. Destaca os traços de caráter e de formação ideológica de quem foi tornado mito por muitos, que existe na realidade vivida pela humanidade desde os seus primórdios nas variadas condições históricas produzindo líderes e gênios intelectuais, como um exemplo a ser conhecido e seguido.
O primeiro texto reflexivo de Marx, aos 18 anos, é sobre a escolha do caminho profissional que “exige uma ponderação sobre os objetivos do próprio desenvolvimento que assegure o respeito pelos princípios com que foi formado e o interesse maior de realização, sem incorrer em decisões apressadas, entusiasmos fugazes, ambições mesquinhas e egoístas”. Busca a essência da sua própria definição como membro da humanidade e investiga a realidade e a história da sua formação. Chega a uma primeira conclusão: de que pretende forjar em si um lutador competente para transformar a sociedade de modo a que todos sintam o bem-estar necessário ao desenvolvimento de cada um.
Nessa altura, ainda recém saído da adolescência, revela ter na sua conciência a crença no divino e os princípios morais fundamentais das religiões cristãs, herdada da cultura de seu pai – um advogado judeu tornado protestante, estudioso da filosofia francesa na época dominada por correntes humanistas em busca de caminhos abertos pela Revolução Francesa e pelas ações renovadoras de Napoleão (até ser derrotado em 1815 pela Santa Aliança encabeçada pelo Czar da Rússia e o Governo da Prússia). Neste contexto o jovem revela a aspiração de: formar-se para ser útil à humanidade. “Como podemos reconhecer essa ilusão sem rastrear a fonte da própria inspiração?”escreveu Marx em 1836.
Descobre no idealismo de Hegel e no conceito de dialética, reforço para assumir convicções ideológicas de esquerda ao serviço da emancipação social da humanidade, abrindo caminho para a compreensão de teorias não religiosas e revolucionárias que vão ser aprofundadas quando conhece, em 1843, a obra de L.Feuerbach sobre “A essência do Cristianismo” onde a crítica à teologia conduz ao materialismo.
À medida em que o estudioso jovem consolida a sua percepção intelectual teórica, vai descobrindo divergências com os grandes professores em que se baseia, quando mergulha no conhecimento da realidade em que vive a classe trabalhadora. Ao mesmo tempo que analisa as suas próprias características culturais, que têm consonância com os autores que admira, percebe que não correspondem às condições de vida e formação da classe trabalhadora e dá um passo à frente criticando as raízes das divergências. Está sempre preocupado em não seguir um “entusiasmo repentino” sem conhecer as causas. “Nós não analisamos, não consideramos os seus encargos totais, a grande responsabilidade que nos impõe, a vimos apenas a uma grande distância; e a distância é algo enganoso.”
Com tais princípios, Marx aceita como natural os sacrifícios do seu bem-estar para estar junto aos “seus iguais”, e aponta os erros do socialismo utópico, assim como dos anarquistas de esquerda, que formam associações onde realizam debates intelectuais sem agir pela transformação concreta da sociedade que só seria possivel pela ação dos próprios trabalhadores contra os que exploram e detêm o poder.
O filme “O Jovem Marx” mostra a evolução dos jovens comunistas
Utilizando a correspondência pessoal entre Marx e seus amigos, para além de estudar a extensa obra teórica posteriormente escrita, Raoul Peck abre ao espectador uma via que lhe permite mergulhar nas figuras humanas que enfrentaram as suas próprias contradições na vida para debaterem conceitos teóricos confrontados com os detalhes da realidade que os cerca.
Os diálogos entre Marx e Jenny revelam a cumplicidade e o amor profundo que os uniu, sendo ela herdeira de uma família aristocrática ligada ao governo da Prússia. Colega de Marx na escola e também humanista e rebelde, reflete o crescente movimento feminista na Europa. Casa-se com “o judeu converso”, como referia rindo a opinião do seu irmão ligado ao governo da Prússia, e enfrenta uma vida difícil, com frequente miséria, para alimentar e tratar da saúde dos filhos sem abandonar a participação política. Juntos suportam as perseguições desencadeadas pelas elites governantes, e participam de acalorados debates ideológicos com pensadores da esquerda burguesa e socialistas utópicos na França, na Bélgica e em Londres, depois de terem sido expulsos da Alemanha.
Com o entusiasmo de jovens que dão a vida por uma causa em benefício de toda a humanidade, vão deixando de lado as crenças abstratas, os privilégios de classe, a vaidade egoista, a noção de superioridade herdada de uma elite econômica e intelectual, os objetivos individualistas. Estudam a realidade social com recursos da ciência para evitarem os erros de interpretação, buscam a linguagem simples e direta dos trabalhadores e incentivam a participação deles nas reuniões para ficarem integrados no movimento de ideias e ação transformadora.
Junto a eles, como grande amigo, segue Engels, filho de um rico proprietário de indústria em Londres, onde trabalha junto à administração. Mary Burns – operária na sua empresa, lidera uma greve em defesa da colega que perdeu os dedos na máquina textil, e é demitida pelo patrão. Engels protesta e é admoestado pelo pai. Sai e vai ao “gueto” dos trabalhadores nos subúrbios de Londres onde descobre e se apaixona por Mary. Assim detona o precário equilíbrio da familia patronal.
O jovem Engels já era um estudioso da economia e autor de um texto sobre a exploração da mão de obra de mulheres e crianças tornados escravos na indústria nascente na Inglaterra, que Marx já havia lido com admiração. Passam a estudar juntos e, com o apoio de Jenny e de Mary que participam na discussão sobre as realidades opostas da aristocracia e da classe trabalhadora, constroem as bases teóricas da luta de classes que é sintetizado no “Manifesto Comunista”, publicado em 1848, escrito em linguagem simples e objetiva.
A dinâmica geradora do “homem novo”
Os debates provocados por Marx e Engels com os intelectuais humanistas, utópicos ou anarquistas, que representavam a esquerda na época e promoviam as associações para onde afluia o proletariado que buscava formação teórica para a sua conciência espontânea de rebeldia contra a classe exploradora, propunham uma visão objetiva da realidade sem a versão caritativa e protetora dos que defendiam a igualdade entre todos “porque somos irmãos”. Aí residia o problema que dava origem ao conceito social-democrata, proposto como oferta de condições de vida para a classe trabalhadora sobreviver e ser explorada por uma elite intelectual detentora do poder político e econômico a que chamavam “democracia”.
Marx e Engels lutavam pela classe trabalhadora dos “nossos iguais”, para que partilhassem a renda nacional distribuida pela sociedade como estrutura de saúde, escolas, seguridade social, transportes, habitações, empregos, ou seja um Estado Democrático efetivamente, socialista. Com tais argumentos conquistaram a chamada “Liga dos Justos” transformando-a em “Movimento Comunista”. A visão romântica dos humanistas era substituida pelo materialismo científico.
Este foi o primeiro passo para dar início ao propósito revolucionário da Revolução Soviética que disseminou a luta mundial pelo socialismo e a formação do que Che Guevara chamou “homem novo”, reconhecendo que a Revolução em Cuba criara condições para que viesse a existir em um futuro mais próximo. Portanto um ideal a ser trabalhado pelos povos de todo o planeta.
A evolução do pensamento revolucionário que sempre existiu entre os homens e mulheres desde os primórdios da História da Humanidade, deu o passo científico há 200 anos com os trabalhos de Marx e Engels e seguiu com o desencadear de processos revolucionários que ficaram assinalados pela Revolução Russa em 1917 e a formação de países que conservaram o sistema socialista – China, Vietnam, Laos, Coreia do Norte e Cuba – e têm suportado as arremetidas permanentes do imperialismo a partir dos Estados Unidos, Israel e os países da Europa que se uniram em torno da OTAN e invadem países que tentam alcançar a soberania nacional através do desenvolvimento das riquezas dos seus territórios inclusive com a formação tecnica e social do seu povo.
Cada povo tem a sua história e absorveu uma cultura específica, o que define as condições de luta que o processo revolucionário exige face à permanente pressão do sistema capitalista e da agressão imperialista. As novas gerações têm um árduo trabalho de formação para contribuirem com o lado honrado da história. Os seus pais e avós têm o dever de manter as condições éticas da educação familiar e social evitando e denunciando a perversão imposta pelo imperialismo aos órgãos de comunicação social que tentam, de todas as maneiras, alienar as populações para que se tornem egoistas e defensores de privilégios individuais que sustentam uma elite exploradora, perversa e criminosa como a que se vê hoje liderada por chefes de governo como Trump, Nathanyahu e Bolsonaro.
*Zillah Branco é cientista social, consultora do Cebrapaz e colunistado Portal Vermelho.. Tem experiência de vida e trabalho no Chile, Portugal e Cabo Verde.
Vermelho, 14 de fevereiro de 2019