A crescente rebelião contra o neoliberalismo

5 de março de 2019

Há alguns dias, apareceu na capa dos maiores jornais dos dois lados do Atlântico Norte uma notícia que caiu como uma bomba; vejamos o que ocorreu e o burburinho que ela gerou.

Por Vicenç Navarro, na Carta Maior:

 

 

 

 Durante vários meses, uma das principais empresas tecnológicas do mundo, Amazon (dirigida pelo homem mais rico do mundo), anunciava a abertura de uma nova sede no distrito de Queens, na cidade de Nova York, prometendo gerar nada menos que 25 mil novos empregos. O Queens é o distrito mais pobre da cidade (e muito mais extenso que o distrito mais rico, Manhattan, a parte de Nova York mais visitada e praticamente a única conhecida pela grande maioria dos turistas que visitam esta cidade).

O investimento da Amazon em Queens poderia renovar e modernizar significativamente aquela parte da maior urbe dos Estados Unidos. O establishment político nova-iorquino, incluindo o governador do Estado, senhor Andrew Cuomo (que passou a ser chamado de Amazon Cuomo), do Partido Democrata, e o prefeito Bill de Blasio (dirigente da ala progressista do mesmo partido), ofereceu todo tipo de incentivos, até mesmo fiscais, (equivalente a um subsídio de mais de 3 bilhões de dólares), para atrair a Amazon para que viesse se estabelecer no Queens, criando empregos e reavivando aquela parte da cidade. As pesquisas mostram que, mesmo quando metade dos pesquisados na cidade de Nova York considera o subsídio público excessivo, estavam de acordo com o plano que o Partido Democrata desenhou e promoveu para atrair a Amazon.

Convido o leitor a pensar o que ocorreria se, numa cidade como Barcelona, Madri, Bilbao, Sevilha ou qualquer outra grande cidade da Espanha, o establishment político de tal cidade tivesse encarado tal situação: a oportunidade de trazer a Amazon à sua urbe, com a possibilidade de criar emprego (a frase que se utiliza mais constantemente para apoiar tais investimentos). O mais provável, ao menos até há pouco tempo, seria que os establishments políticos e midiáticos (sobretudo aqueles de orientação liberal) se mobilizassem por terra, mar e ar para concretizar tal negócio. Parece lógico, razoável e desejável que fosse assim.

 

Entretanto, a Amazon se foi. Por que?

Também há poucos dias, em 14 de fevereiro, a notícia bomba na primeira página dos maiores jornais dos dois lados do Atlântico Norte foi outra: a Amazon anunciava que não se estabeleceria mais no Queens e em nenhum outro lugar em Nova York, devido à oposição encontrada na população e nos representantes políticos do distrito mais diretamente afetado pelo estabelecimento da sede de Amazon.

Na verdade, houve uma grande oposição entre amplos setores de Queens e seus representantes políticos. E a razão é fácil de entender. As pessoas que atualmente vivem no Queens não se beneficiariam. Ao contrário, seriam prejudicadas. Assim, os moradores não concordaram com a euforia do establishment político-mediático, e por várias razões. Uma delas é que a Amazon é uma empresa tecnológica, das mais conhecidas por sua resistência y agressividade contra a sindicalização dos trabalhadores e empregados. Tal empresa é o protótipo de empresa neoliberal, citada como modelo pelos economistas neoliberais. Nas negociações com os sindicatos, a Amazon não só mostra sua forte oposição contra os empregados que estão sindicalizados (indicando que preferiam ter uma relação individual e pessoal com eles), como se opõe a que os sindicatos tentem se aproximar dos trabalhadores, chegando a anunciar possíveis represálias contra os trabalhadores que demonstrassem algum vínculo com organizações sindicais. 

É mais, ao analisar outras dimensões características da Amazon, se vê que é uma empresa que bastante contrária a pagar impostos, e que utiliza sua grande influência política e midiática para promover uma cultura anti impostos (seja para pessoas físicas ou jurídicas), empobrecendo as arcas da autoridade pública do bairro, distrito ou Estado, como ocorreu na cidade de Seattle, onde tem sua outra sede. Por outra parte, os empregados que recebem os melhores salários da empresa não são para as pessoas que moram no bairro ou distrito onde se encontra a sede, uma zona que se gentrificaria rapidamente, o que levaria a uma expulsão dos atuais moradores do lugar onde sempre viveram. Na verdade, com o anúncio de que a Amazon se estabeleceria naquele distrito, os preços da propriedade e do aluguel aumentariam de forma exorbitante, o que levaria a mudanças profundas nas características sociais, de comércio e de política fiscal da zona, todas elas desfavoráveis aos que moram nela. A “renovação” e “modernização” do distrito teria como custo a “expulsão da população que agora vivia nele”. Esta situação está acontecendo em todas as principais cidades, nos dois lados do Atlântico Norte.

 

A gentrificação dos bairros operários

O que é novo nessa história é ver a população se rebelando contra o establishment político neoliberal (seja ele republicano ou democrata), que por sua vez se sente ameaçada por um movimento ao que demonizam chamando-o de “populista”, e que se está estendendo não só no Queens e em Nova York, mas também ao longo dos Estados Unidos e também da Europa. Entre os dirigentes desse movimento está a nova congressista Alexandria Ocasio-Cortez, que representa o distrito de Queens e do Bronx na Câmara de Representantes. Seu movimento utiliza o slogan “sim, podemos mudar esta situação”, semelhante ao “sim, podemos” do 15M na Espanha. Em seu Twitter, Alexandria Ocasio-Cortez afirma que “diferente do que eles querem que você acredite, tudo é possível”. No dia em que a empresa anunciou sua desistência, o movimento publicou um comunicado afirmando que “hoje é o dia no qual um grupo de pessoas normais, gente comum, cidadãos de Nova York e seus distritos e bairros, derrotaram a avareza sem limites da corporação Amazon, a exploração dos seus trabalhadores e o poder do homem mais rico do mundo”. 

Essa oposição amplia e contundente (dos moradores do distrito, que tomaram as salas da câmara do parlamento nova-iorquino durante as sessões nas que se discutiu o caso Amazon) ao establishment político-midiático gerou uma grande simpatia popular, facilitada pela enorme arrogância mostrada pela Amazon em suas relações com os políticos locais da zona, aos quais sequer quis ver, assumindo que seriam os primeiros em acolhê-los, quando na verdade foram os que mais se opuseram. Ninguém levou a sério os moradores do distrito, até que se eles mobilizaram. Um dos seus porta-vozes denunciava o contraste onde estava, por um lado, os planos que a Amazon estava desenvolvendo com a ajuda do governo da cidade, para construir heliportos para os executivos desta empresa, e por outro a deterioração tão acentuada do metrô do Queens.

Algo parecido ocorreu nas grandes cidades da Espanha. Em Barcelona, a prefeita Ada Colau e o movimento dos moradores lideraram e venceram as eleições municipais – contrariando todas as pesquisas oficiais –, como resultado da insatisfação popular contra os interesses financeiros que estavam destruindo os bairros populares, os quais faziam impossível o acesso à moradia para a população comum. Isso explica a enorme hostilidade dos meios de comunicação de da direita (e também parte mais confusa da esquerda) contra o seu mandato. Neste sentido, é importante dizer que, na cobertura da saída da Amazon de Nova York, a grande maioria dos jornais espanhóis apresentam a versão dos fatos dada pela Amazon e pelo establishment político-midiático da cidade de Nova York. Em nenhum veículo se mostrou a versão do ocorrido a partir do ponto de vista das classes populares. Mais um exemplo do enorme viés a favor do status quo, da falta de vocação crítica e da cultura midiática hegemônica na Espanha (incluindo a Catalunha). Assim de claro.

 

Vermelho, 05 de março de 2019