A luta de classes e os sindicatos na disputa pelo Oscar

5 de fevereiro de 2020

O debate estabelecido sobre os concorrentes ao Prêmio da Academia do cinema nos Estados Unidos tem fundo ideológico e histórico.

 

Ideologia e luta de classes. No clima do pré-Oscar, com o tema trabalhadores e sindicalismo, esses conceitos têm estado em grande evidência. Mesmo o documentário brasileiro Democracia em vertigem, de Petra Costa, tem essa conotação bem acentuada. O Irlandês, filme de Martin Scorsese, também trata do assunto, mas o mais marcante é o documentário Indústria Americana.

O caso é o da fábrica da General Motors, em Ohio, que fechou em 2008 e, em 2015, foi reaberta como Fuyao Glass America, com dinheiro, tecnologia e sistema de produção chineses. Os chineses que comandam o negócio chamam os norte-americanos de preguiçosos e ineficientes. Estes, reclamam da jornada extenuante e da insegurança no trabalho.

Os operários norte-americanos também querem a presença do sindicato dentro da fábrica, enquanto o empresário chinês presidente mundial da FGA abomina a ideia, argumentando que a organização sindical atrapalha a produtividade. Talvez nos Estados Unidos ele se sinta à vontade para defender essa tese – na China há um rigoroso Código do Trabalho. “O objetivo da vida é trabalho”, diz ele. Essa é uma meia verdade.

 

Hábitos de trabalho

O conceito de trabalho foi elucidado por Karl Marx, em O Capital, como um ato que se passa entre o homem e a natureza. Seu significado histórico foi brilhantemente analisado por Friedrich Engels no seu artigo O papel do trabalho na transformação do macaco em homem, de 1876. “A natureza proporciona os materiais que o trabalho transforma em riquezas”, escreveu. “Mas o trabalho é muito mais do que isso: é o fundamento da vida humana.”

Engels diz que a formação do homem e da comunidade primitiva aconteceu na medida em que se formava o próprio trabalho humano como processo que gasta uma quantidade de energia física, nervosa e mental para se criar os produtos necessários à sua existência.

Para satisfazer as necessidades vitais, o homem foi obrigado a aperfeiçoar constantemente os instrumentos e os hábitos de trabalho. “O próprio trabalho foi se diversificando, aperfeiçoando-se a cada geração e estendendo-se a novas atividades”, disse Engels. “A agricultura surgiu como alternativa à caça e à pesca, e mais tarde apareceram a fiação e a tecelagem, a manipulação de metais, a olaria e a navegação.”

 

Máquina a vapor

Com o desenvolvimento do trabalho, emergiram novas relações sociais, o comércio, as profissões, as artes e as ciências. Vieram depois o direito, a política e a religião. “Porém, se o homem levou milhares de anos para aprender, de certa forma, a prever as remotas consequências naturais relativas aos processos produtivos, mais tempo levou para aprender a calcular as longínquas consequências sociais desses mesmos atos”, disse Engels.

“Os árabes, quando descobriram a forma de destilar o álcool, não poderiam nem de longe imaginar que estavam forjando uma das principais armas de extermínio da população indígena no continente americano. Mal sabia Colombo, ao descobrir a América, que estava fazendo ressurgir a escravidão, extinta havia muito na Europa, além de estar estabelecendo novamente as bases para o tráfico de escravos”, analisou.

Chegaram também as alterações nas relações de produção. Antes o artesão produzia as mercadorias e o consumidor ia ao seu local de trabalho fazer a encomenda. Leo Huberman, na obra História da riqueza do homem, relata que Willian Petty, famoso economista do século XVII, pôs em palavras aquilo que já estava ocorrendo nas relações sociais. “A fabricação da roupa deve ficar mais barata quando um compõe as fibras, outro fia, outro tece, outro puxa, outro alinha, outro passa e empacota, do que quando todas as operações mencionadas são canhestramente executadas por uma só mão”, teria dito Petty.

Ao analisar esse fenômeno, com a invenção da máquina a vapor dos séculos XVII e XVIII, Marx afirmou que o homem não suspeitava de que estava criando um instrumento mais poderoso do que qualquer outro, que iria subverter as condições sociais em todo o mundo. “Quando James Watt anuncia em 1735 sua máquina de fiar, e com ela a Revolução Industrial do século XVIII, ele nada fala disso, mas simplesmente de uma máquina para ‘fiar sem dedos’”, disse ele. 

 

Resposta neoliberal

Desse novo mundo surgiram os sistemas políticos modernos, as crises econômicas, as guerras geopolíticas. Com o projeto neoliberal, os Estados nacionais da geografia econômica e política do elo mais fraco foram reduzidos a meros figurantes ou a reles gerentes do entreguismo, sem condições sequer de estender a mão aos que foram para o olho da rua, formando um exército de desempregados superior ao da crise de 1929.

Na outra faixa, igualmente castigada pelo desemprego, muros e xenofobia foram erguidos contra aspirantes a trabalhador clandestino. Em toda parte, a propaganda ideológica passou a difundir a falsa tese de que que a oposição trabalho e capital ganhara novo sentido com o fim da dicotomia Washington-Moscou.

A resposta neoliberal à crise do fordismo keynesiano, considerado incapaz de levar o sistema adiante, na verdade representou uma regressão civilizatória em grande escala. O monstruoso desemprego talvez seja a face mais visível dessa constatação, um dilema dos saltos produtivos.

O mundo evoluiu socialmente desde a máquina de James Watt, como analisou Marx, basicamente pela organização política dos trabalhadores. Contribuíram para isso, em grande medida, as teses do próprio Marx, de Engels e de Vladimir Lênin.

Contribuíram também os ludistas, os socialistas utópicos — e mesmo Frederick Taylor, Jules Henri Fayol e Henry Ford. Estabeleceu-se a tríade “8 horas de trabalho, 8 horas de sono e 8 horas de lazer” como padrão para os trabalhadores do século XX.

 

Regressão civilizatória

Entre 1950 e 1970, diz o historiador Eric Hobsbawm, o mundo viveu seus anos de ouro: o desemprego manteve-se em níveis relativamente baixos, a expectativa de vida aumentou no mundo todo, a produção de alimentos e bens manufaturados quadruplicou.

Foi também o período em que os trabalhadores obtiveram suas maiores conquistas no mundo capitalista — em grande parte, embaladas pelos ventos que sopravam de Moscou —, inimagináveis pelo proletariado europeu descrito por Marx e Engels no século XIX.

No Brasil mesmo pode-se dizer que a brisa moscovita contribuiu para a moderna legislação trabalhista da Revolução de 1930, agora destruída pelo golpe de 2016 e pela ascensão do bolsonarismo.

Ao virar a moeda do modo de produção capitalista, contudo, compreende-se melhor as causas dessa regressão civilizatória. “Como legislador privado, o capitalista formula seu código de fábrica, caricatura da regulação social, um sistema de punições sobre os salários com o qual o contramestre faz o papel do antigo condutor de escravos”, escreveu Marx.

Quando o capital se apropriou da máquina, disse ele, sua conclamação foi: ao trabalho, mulheres e crianças. “O operário agora vende mulher e filhos; transformou-se em mercador de escravos”, escreveu. Na fábrica, nas palavras de Marx, “o esqueleto da produção é constituído pela cooperação das máquinas”.

 

Crash da Bolsa de Nova Iorque

A substituição das máquinas a vapor por outras movidas a eletricidade e à combustão interna fóssil, denominada Segunda Revolução Industrial, na virada do século XIX para o século XX, impulsionou outro salto espetacular da produtividade — a produção de mais valor com menor tempo de trabalho.

Associada a uma reestruturação fundamental dos processos de trabalho, seguindo uma avalanche de novas tecnologias de racionalização produtiva, promoveu alterações profundas no cenário econômico. O taylorismo na linha de montagem da Ford mudou radicalmente o modo como as empresas produziam bens e serviços. O transporte foi acelerado. A eletricidade forneceu energia barata e abundante para impulsionar o processo produtivo.

Segundo o escritor americano Jeremy Rifkin, no livro O fim dos empregos, a produtividade aumentou continuamente desde a virada do século. Em 1904, eram necessárias 1.300 horas/homem para construir um carro. Em 1932 era possível construí-lo com menos de 19 horas. Entre 1920 e 1927, a produtividade na indústria americana aumentou em 40%. Ao mesmo tempo, mais de 2,5 milhões de empregos desapareceram.

Em 1929, com a quebra do mercado de ações — o crash da Bolsa de Nova Iorque —, o mundo mergulhou na mais sinistra depressão da era moderna. Mesmo diante dos sinais da crise, contudo, os capitalistas preferiram embolsar o lucro extra total obtido com o aumento da produtividade a transferir uma parte na forma de aumentos salariais.

Henry Ford – que também dizia que o sindicato atrapalha a produtividade – sugeriu que os trabalhadores fossem melhores pagos para que pudessem comprar os produtos, mas seus pares preferiram ignorar o conselho. O sistema estava preso a uma contradição: sem saída para a crise que se agravava, muitas empresas continuaram reduzindo custos com a substituição de trabalhadores por máquinas.

 

Expansão dos mercados

Em plena depressão, o economista britânico John Maynard Keynes publicou o livro Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, que iria alterar o modo como os governos regulariam a política econômica.

Numa passagem, ele advertiu para um novo e perigoso fenômeno cujo impacto poderia ser aprofundado nos anos seguintes: “Estamos sendo acometidos de uma nova doença da qual alguns leitores talvez ainda não tenham ouvido falar, mas sobre a qual ouvirão falar muito nos próximos anos: o ‘desemprego tecnológico’. Isso significa desemprego como resultado da nossa descoberta de meios de economizar mão de obra, superando a velocidade com que podemos encontrar novos usos para ela.”.

Em O Capital, Marx também comentou o desenvolvimento industrial por esse viés. “Sob sua forma máquina (…), o meio de trabalho se torna imediatamente o concorrente do trabalhador. A máquina cria uma população supérflua, isto é, útil para as necessidades momentâneas da exploração capitalista”, escreveu.

Engels fez o mesmo na obra Do socialismo utópico ao socialismo científico. “É a força da anarquia social da produção que converte a capacidade infinita de aperfeiçoamento das máquinas num preceito imperativo, que obriga todo capitalista industrial a melhorar continuamente a sua maquinaria, sob pena de perecer. Mas melhorar a maquinaria equivale a tornar supérflua uma massa de trabalho humano (…). A expansão dos mercados não pode desenvolver-se ao mesmo ritmo que a produção. A colisão torna-se inevitável”, escreveu.

Entra, nesse diagnóstico, o sistema taylorista, complementado pelo fordismo, como grande impulsionador da produção, sistematizado pelo engenheiro americano Frederick Taylor em seu livro Princípios da administração científica. Usando um cronômetro, ele dividiu a tarefa de cada trabalhador nos menores componentes operacionais e mediu cada um para formular técnicas de economizar segundos preciosos no processo de trabalho. Herry Ford complementou a ideia com a linha de montagem movida a volante magnético.

 

Desenvolvimento industrial

Vladimir Lênin, o líder da Revolução Russa de 1917, considerou o taylorismo uma aquisição científica. “Deve ser colocado na ordem do dia o aproveitamento do muito que há de científico e progressista no sistema taylorista, observando a proporção entre o salário e o resultado geral da produção”, escreveu ele na obra As Tarefas Imediatas do Poder Soviético.

A proporcionalidade entre salário e lucro, na produção capitalista, a busca desregulada da produtividade, é o motivo central das críticas a esse sistema, mais conhecido como “fordismo”.

Charles Chaplin, no filme Tempos modernos, retratou o homenzinho esmagado pela linha de montagem. Aldous Huxley, no livro O Admirável Mundo Novo, imaginou um futuro no qual os homens seriam tolhidos pela coerção e desnorteados por uma nova religião. Assim como Antônio Gramsci, no seu conhecido trabalho O Americanismo e o Fordismo. “Será que o tipo Ford de indústria e a organização fordista do trabalho e da produção são ‘racionais’?”, indagou.

A dualidade do desenvolvimento industrial — o lucro e o salário — é o grande dilema da produtividade. Na inclinação natural do capitalismo, a tendência é a eliminação de empregos, a desregulação das relações de trabalho e a redução salarial. Não é um fenômeno cíclico. É estrutural.

 

Folha de SP, 05 de fevereiro de 2020