A reforma da Previdência e a espera de Godot (parte 2)

9 de maio de 2019

Quem acompanha séries televisivas já sabe: no primeiro minuto de um novo episódio, é comum recordar o que se passou no episódio anterior. Em textos escritos isso não é usual, mas parece conveniente em alguns casos para não deixar o leitor desavisado do que se tratou na primeira parte de uma trilha a seguir.

Na semana passada — na primeira parte deste artigo, que pode ser lida aqui — destacou-se: (a) o abuso jurídico e a grave infração à segurança jurídica de, em matéria previdenciária, inovar sem progressividade as condições de acesso à aposentadoria, mediante sucessivas emendas constitucionais ou mesmo de forma única, mas estabelecendo requisitos etários lineares ou de tempo de contribuição novos sem escalonamento ou aplicação de fator sobre o período faltante e, consequentemente, com ressignificação do tempo vencido e criação de incerteza quanto ao percurso futuro a cumprir — situação bem sintetizada na metáfora empregada pelo ministro Gilmar Mendes na ADI 3.104/DF de uma “corrida de obstáculo com obstáculo móvel” ou, pela analogia teatral que nomeia o presente artigo, referente à situação de dois mendigos da peça Esperando Godot, de Samuel Beckett, que são frustrados continuamente quanto à chegada do misterioso personagem;(b) a ausência na PEC 6/2019 de regras de transição de segundo grau(“transição da transição”), com tratamento especialmente gravoso de agentes beneficiados por normas de transição previstas há 21 anos (desde a EC 20/98) ou 16 anos (desde a EC41/2003); (c) a “austeridade seletiva” na PEC 6/2019 de alguns grupos de servidores civis, sendo alguns beneficiados com transições suaves e aquisição de direito novo à integralidade (policiais civis e agentes penitenciários) enquanto outros são sujeitados a regras de imediata aplicação do novo piso etário geral (direito à integralidade dos velhos servidores), com quebra de isonomia no percurso de transição.

Essas considerações aplicaram observações registradas em texto acadêmico redigido por ocasião da proposta de Temer (PEC 287/2016)[1] e dois novos textos resumidos, publicados na ConJur, sobre as normas de transição da proposta de Bolsonaro (PEC 6/2019)[2][3]. Neste ponto fecha-se a sinopse da primeira parte deste artigo e inicia outra rodada de considerações (segunda parte). Corta!

Reformas previdenciárias devem intensificar a relação entre contribuição e contrapartida e reforçar a confiança no sistema previdenciário e em suas regras de transição. Sem confiança não há Previdência e sem assegurar efeito estabilizador ao transcorrer do tempo associado à boa-fé dos interessados não há proteção da confiança alguma[4].

Não se encontra razão de política legislativa ou razão jurídica que explique por que devem ser adotados três critérios de manejo do tempo de transição no regime geral de Previdência e apenas um critério nos regimes próprios na PEC 6/2019, com tratamento não isonômico no percurso transitório entre os regimes e dentro de cada regime previdenciário e, ainda, revogação pura e simples de normas transitórias constitucionais de prolongado curso de aplicação. O tempo de transição não deve ser desigualmente disciplinado e, sobretudo, não pode ser ressignificado ou desconsiderado em seu valor relativo, porquanto isso significaria usurpar dos segurados a liberdade de planejar, calcular e conhecer os efeitos dos atos praticados e a repercussão da contribuição vertida[5].

Em uma palavra: revogar regras de transição constitucionais, sem mais, sem a consideração proporcional dos efeitos passados e da confiança suscitada pelo exercício do poder de reforma constitucional anterior, constitui insegurança jurídica qualificada, deslealdade normativa em face do “segurado”, que promove a desconfiança geral nas próprias normas de transição ora propostas[6]. A credibilidade das novas regras de transição desaparece, pois deixam de servir de garantia para o futuro ao desconsiderarem — sem cerimônia — as normas de transição precedentes.

Normas de transição são o último reduto da segurança jurídica: são normas que estabelecem disciplina específica, concreta e excepcional, tendente ao esgotamento; visam conciliar segurança e mudança e, por lógica inerente, não devem estar sujeitas à mutabilidade própria das normas permanentes.Estabelecidas na Constituição, devem ser respeitadas, no mínimo quanto a sua eficácia passada[7]. Revogá-las sem substituição e consideração proporcional de sua incidência, instituindo condição nova que invalida percurso anterior já cumprido, ou o descalibra em face do arco temporal integral a ser atendido, é evidente retrocesso normativo expropriatório[8]. Pode-se sustentar que as normas de transição, ao apreenderem no tempo determinado conjunto de sujeitos específicos e estabilizarem uma situação jurídica concreta, tendente ao esgotamento, instauram por si direito adquirido sob condição cujo adimplemento escapa ao arbítrio de outrem[9], direito adquirido proporcional[10] ou direito acumulado[11]. O tema é fascinante, e exigiria para seu desenvolvimento outro artigo, que ao menos diferenciasse situações deste tipo de matriz legal ou de matriz constitucional, como sugeriu com inteligência fina (e de forma dialeticamente superadora) Sepúlveda Pertence[12]. De qualquer sorte, a revogação pura e simples de direitos assegurados de matriz constitucional em norma de transição vigente, por emenda constitucional sucessiva, com criação de “buracos negros normativos” não pode ser considerada legítima à luz da segurança jurídica.

Como ensinou com acuidade especial Celso Antonio Bandeira de Mello, em situações de sucessão normativa:

(..) “fatos pretéritos, mas que se encartam em situações ainda em curso, podem e devem ser tratados de maneira a se lhes reconhecer a significação jurídica que tiveram em face da regra precedente, sem com isto afronta-se a regra nova ou negar-lhe imediata vigência. Basta compatibilizá-los de sorte a atribuir a tudo que passou o valor jurídico que lhe correspondeu até o tempo da sobrevinda da nova lei e atribuir a tudo que transcorrerá a partir desta última os efeitos que resultam de seu tempo de império. Vale dizer: reconhecer-se – o que é incontendível – a força modificadora da regra nova em relação ao regime anterior, sem, com isto, fazer ‘tabula rasa’ da disciplina pretérita.” (grifos do autor)[13].

Para exemplificar esse entendimento à mutação da regra de tempo de serviço ou de contribuição exigido para a aposentadoria, sintetizou o mesmo mestre:

“(..) cada ano de serviço possui uma significação de direito perante a norma então vigente. Esta significação é a relação entre o período vencido e o período total requerido para que se integralize o direito a se aposentar. A superveniência de outra norma encontra significações já existentes e, dentre elas, está a que se aludiu. Por força das disposições novas certamente o servidor não poderá se aposentar antes de 35 anos de serviço, mas tais disposições não podem desconstituir o significado jurídico que os 20 anos passados tiveram sob o império da lei do tempo em que transcorreram sem com isto estarem incursas em retroação. Ou seja: se ele tinha, pois, 2/3 do tempo necessário para a aposentação, ele continuará a ter estes 2/3, já agora dos 35 anos que passaram a ser requeridos. (…). Em razão disso, recusar aos fatos passados o relevo que um dia tiveram perante uma norma equivale a recusar-lhes a única densidade que possuíam perante o Direito. Em uma palavra: equivale a desconstituir a juridicidade, a expressão ‘de jure’, que fazia deles um elemento do universo jurídico. Em outros termos, negar o valor que então possuíam é pura e simplesmente fazer retroagir a nova regra, sem o que seria impossível infirmar o alcance que dantes possuíam”.[grifos do autor][14].

A Previdência é hoje um direito fundamental sob ataque político severo. Vítima de profecias demográficas catastróficas, cujas margens de erro são omitidas, da ausência de reservas constituídas pelo poder público, de evasão e de fraudes de contribuintes, empresas e órgãos, é manipulada sem constrangimentos pelo poder reformador a cada novo governo. É preciso reformá-la? Não tenho dúvida. O aumento da despesa previdenciária é real, o envelhecimento da população é fato, a natalidade decresce, há pouco incentivo para o aumento do número de contribuintes e tudo isso conspira contra a sustentabilidade dos regimes de previdência obrigatórios. Mas nada disso autoriza a ausência de disposições transitórias progressivas, equilibradas, razoáveis, sustentáveis e, sobretudo, equitativas no tempo. Tampouco autoriza que reformas previdenciárias sejam feitas sem adequada análise de impacto normativo e sem encadeamento a normas de transição em curso.

Previdência exige previsibilidade, tutela reforçada da confiança, sob pena de incentivar a informalidade e a sonegação. A blindagem jurídica não pode ser frágil, instável, submetida à lógica do tudo ou nada (direito adquirido/não direito adquirido), e normas transitórias justas não constituem um favor, mas uma dimensão autônoma do âmbito de proteção dos direitos fundamentais dos segurados.

As disposições transitórias são um lugar de temperança. A temperança como a sabedoria do tempo, de que nos fala poeticamente François Ost, como “a justa dosagem da continuidade e da mudança”[15]. Deve ser assim também — com boa dose de sabedoria do tempo — o debate sobre a Previdência Social. Longe desses marcos, sem adotar critério previdenciário que reconheça proporcionalmente o tempo cumprido e a eficácia das normas de transição vigentes, atua o legislador como artífice da incerteza e do absurdo, deixando todo segurado à espera de Godot.


[1] MODESTO, Paulo. Disposições constitucionais transitórias na reforma da previdência: proteção da confiança e proporcionalidade. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP. Belo Horizonte, ano 15, n. 56, p. 9-54, jan./mar. 2017. Disponível em: http://bit.ly/reformaprevidenciatransicao. Acesso em 27/4/2019.
[2] FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves; MODESTO, Paulo; GABARRA, Rafael Miranda. Regra de transição adotada pela PEC da Previdência é injusta e irrazoável. ConJur – Opinião. Publicado em 22/2/2019. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2019-fev-22/opiniao-regra-transicao-adotada-pec-previdencia-injusta. Acesso em 27/4/2019.
[3] MODESTO, Paulo. A reforma da Previdência e a Morte: analogias imprevistas. ConJur – Interesse Público. Publicado em 28/3/2019. Disponível em www.conjur.com.br/2019-mar-28/interesse-publico-reforma-previdencia-morte-analogias-imprevistas. Acesso 27.04.2019.
[4] GARCIA LUENGO, Javier. El principio de la protección de la confianza en el Derecho Administrativo. Madrid: Civitas, 2002, denomina a invocação do princípio em causa como limite à liberdade de configuração do legislador como “proteção da confiança em abstrato”.
[5] ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 4ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 496-499.
[6] É certo que regras de transição podem tratar do trânsito de situações subjetivas ou de situações objetivas (v.g. o período de vacatio legis) e, no texto, referimos apenas as regras de transição do primeiro tipo. Para uma classificação mais abrangente, confira-se a tipologia proposta por Luis Roberto Barroso, de forma percuciente, que distingue as disposições transitórias em três espécies: (I) Disposições transitórias propriamente ditas;(II) Disposições de efeitos instantâneos e definitivos; (III) Disposições de efeitos diferidores. cf. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas.3ª.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 3ª edição, 2008, pp. 411 e ss.
[7] Em texto doutrinário, escrito antes de sua posse no Eg. STF, Carmen Lúcia Antunes Rocha adotou orientação rigorosa na distinção entre normas constitucionais do corpo permanente da Constituição e normas das disposições transitórias, considerando que por sua própria função e características estas últimas “subtraem-se da possibilidade de reformas e emendas (particularmente de emendas aditivas), porque seria tornar perene o que transitório é, e não apenas no nome, senão que também, e especialmente, em sua função precípua e singular” (ver ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Natureza e Eficácia das Disposições Constitucionais Transitórias. In: GRAU, Eros R. e GUERRA FILHO, Willis S. (org). Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 394-395.
[8] Sobre o caráter expropriatório, isto é, condicionado ao pagamento de indenização, de revogação de faculdades e expectativas integradas no direito gravemente afetado por alteração do quadro normativo, v. FERRAZ, Sérgio. Servidor Público e Direito Adquirido. In: VALIM, Rafael; OLIVEIRA, José R. Pimenta; DAL POZZO, Augusto Neves. Tratado sobre o Princípio da Segurança Jurídica no Direito Administrativo. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2013, p. 235-6.
[9] LOPES, Ana Frazão De Azevedo. A reforma da previdência e a questão dos direitos adquiridos em face das regras de transição. Revista de Direito Administrativo, v. 238 (2004), http://dx.doi.org/10.12660/rda.v238.2004.44051.
[10] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Parecer. In: MODESTO, Paulo (org.). Reforma da Previdência: análise e crítica da Emenda Constitucional n. 41/2003 (doutrina, pareceres e normas selecionadas). Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2004, páginas 431-452.
[11] PIERDONÀ, Zélia Luíza. Direito Adquirido e Direito Acumulado. Revista de Direito Social. Porto Alegre, v. 3, n. 10, abr.jun, 2003, p.99-104.
[12] PERTENCE, José Paulo Sepúlveda. O controle de constitucionalidade das emendas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal: crônica de jurisprudência. In: MODESTO, Paulo e MENDONÇA, Oscar (org). Direito do Estado : novos rumos. São Paulo: Max Limonad, 2001, v. 1, p. 23-44. Essa diferenciação do âmbito de proteção da garantia constitucional do Art. 5º, XXXVI, da CF – consoante o direito protegido vincule-se a matriz constitucional direta ou matriz simplesmente infraconstitucional – foi assumida pelo STF a partir do julgamento do MS 24.875, rel. min. Sepúlveda Pertence, j. 11-5-2006, P, DJ de 6-10-2006. De certo modo, trata-se de posição conciliadora, que resolve o paradoxo de considerar-se cláusula pétrea imune à incidência de emendas constitucionais situações jurídicas sem cobertura constitucional direta, instituídas fora da sede da Constituição, amiúde criadas por leis casuísticas aprovadas por elites locais em seu próprio benefício (ex. leis remuneratórias que excedem o teto, incorporam agentes sem concurso público aos quadros da administração, atribuem delegação de cartórios, incorporam ao provento de agentes benefícios temporários após limitado prazo de exercício de funções etc.). Conquanto eventualmente algumas dessas situações possam ser resguardadas pelo princípio da segurança jurídica (ex. servidores com ingresso irregular já aposentados), diante do efeito estabilizador do tempo ou outra circunstância relevante, situações infraconstitucionais como as indicadas e outras não deveriam ser consideradas imunes à incidência do poder de reforma constitucional. Evoluímos para essa posição desde 2004 (Reforma da Previdência e Regime Jurídico da Aposentadoria dos Titulares de Cargo Público. In: MODESTO, Paulo (org). Reforma da Previdência: análise e crítica da Emenda Constitucional 41/2003. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p.89-90, e a reafirmamos em texto de 2017, referido na nota I, supra). Essa orientação moderada, sugerida por Sepúlveda Pertence, permitiu ao STF, inclusive, em anos seguintes finalmente adotar uma posição eficaz quanto ao tema teto de remuneração (RE 609.381, rel. min. Teori Zavascki, j. 2-10-2014, Tema 480). Orientação mais radical, que admite a aplicação do conceito de cláusula pétrea para imunizar qualquer direito adquirido de matriz infraconstitucional e o próprio regime de aposentadoria, pode-se consultar em PONTES FILHO, Valmir. Direito adquirido ao regime de aposentadoria. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 227, p. 31-38, jan. 2002; BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2003, p. 112 e segs, e CAMMAROSANO, Márcio. Considerações sobre a Proteção Constitucional do Direito Adquirido. Cadernos de Soluções Constitucionais, vol. 2. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 280 e segs.
[13] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Parecer. Ob. cit, pág. 438.
[14] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Parecer. Ob. cit., pág. 440-441. A orientação de Celso Antonio sobre o alcance prático do conceito de “direito adquirido proporcional”, além de minha própria adesão no plano constitucional (Disposições constitucionais transitórias na reforma da previdência…, ob. cit, jan-mar, 2017), recebeu recentemente também o valioso apoio de Florivaldo Dutra de Araújo (A proteção constitucional dos direitos adquiridos decorrentes de situações que transcorrem no tempo. In: MOTTA, Fabrício; GABARDO, Emerson (coord). Crise e Reformas Legislativas na Agendado Direito Administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 103-126).
[15] OST, François. O Tempo do Direito. Trad. Élcio Fernandes. São Paulo, Edusc, 2005, p. 17.

 

 é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

 

Conjur, 09 de maio de 2019