– BARBÁRIE – Violência contra mulher é cultural

4 de fevereiro de 2013

Casos recentes de violência contra mulheres, como um estupro coletivo em Curitiba e um sequestro em Joaquim Távora (Norte Pioneiro), chocaram a sociedade paranaense. O que chama a atenção, além da gravidade dos crimes, é que na maioria das vezes os autores são ex-companheiros das vítimas.

Para a antropóloga e professora do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Marlene Tamanini, as raízes da violência contra namoradas, esposas e ex-companheiras é cultural. O problema é que o machismo ainda está muito presente na sociedade brasileira.

“Essa violência é ‘justificada’ por ciúmes, controle de fidelidade, desconfiança injustificável. (…) É uma questão associada a uma cultura patriarcal focada na honra, por causa da baixa autoestima. Muitos desses homens sofrem de alcoolismo, dependência química. Em geral, têm baixa escolaridade. Em 90% dos casos têm menos de 50 anos, são casados ou em processo judicial de separação e não aceitam essa separação”, aponta.

Para Marlene, a proteção das vítimas depende de vontade política. Ela reivindica aumento do investimento em estruturas e em ações públicas para garantir acolhimento às mulheres e, principalmente, punição aos agressores.

A violência contra mulheres chamou a atenção da sociedade paranaense nas últimas semanas. Foram registrados episódios graves, como um estupro coletivo armado por um ex-marido, sequestro e cárcere privado motivado pelo ciúme e até o caso de um homem que ateou fogo e matou a companheira. São situações que mostram que as agressões contra as mulheres estão cada vez mais violentas?

A violência contra as mulheres é antiga e bastante forte na nossa cultura. Esses casos não são novos. Essas situações ganharam repercussão pela forma como aconteceram.

Essa violência é “justificada” por ciúmes, controle de fidelidade, desconfiança injustificável. Muitos desses companheiros se sentem agredidos quando a mulher busca sua autonomia financeira, busca sua liberdade. É uma questão associada a uma cultura patriarcal focada na honra, por causa da baixa autoestima. Muitos desses homens sofrem de alcoolismo, dependência química. Em geral, têm baixa escolaridade. Em 90% dos casos têm menos de 50 anos, são casados ou em processo judicial de separação e não aceitam a separação.

Essa violência se expressa tanto física quanto psicologicamente, emocionalmente. É muito comum o xingamento, a humilhação, a ameaça. É difícil para a mulher sair dessa situação. Principalmente por conta da condição econômica, sobretudo quando têm filhos pequenos. Algumas têm medo morrer. Essa é uma das principais razões que mantêm as mulheres “presas”.

Há também a questão do descaso judicial. A infraestrutura do sistema de apoio não está completa. A mulher precisa de medidas protetivas, mas também é necessário um trabalho de enfrentamento da pobreza, de geração de renda e trabalho, de assistência e enfrentamento preventivo, de qualidade de vida, moradia. Enfim, de direitos sociais. Para isso é preciso desenvolver políticas de educação, de cultura, de comunicação.

A violência doméstica ainda parece ser assunto da casa, privado. Isso faz com que a sociedade realmente não encare a violência doméstica como uma questão que precisa ser superada.

É preciso também pensar em sistemas de acompanhamento do agressor. Esses homens estão sendo formados hoje para o revide, para manter a honra. E hoje temos muitas mulheres provendo a casa. E isso em vez de gerar uma relação mais igualitária, no sentido do diálogo, está gerando mais nichos de pobreza e mais agressões por causa do sistema que gera uma perspectiva de mundo baseado na honra, fidelidade, dependência, obediência da mulher.

Há muitos casos em que os agressores são denunciados à polícia, mas ficam impunes. O problema é que o sistema público não consegue proteger as mulheres da violência?

A estrutura do Estado não é suficiente. Pela perspectiva da assistência social, temos centros de referências e serviços de abrigo e acolhimento. Pela perspectiva da segurança pública, temos o trabalho das polícias Civil, Militar, Rodoviária, Federal, do Corpo de Bombeiros, do Instituto Médico Legal, do Ministério Público, entre outros órgãos.

Mas esse é um trabalho complexo, que exige espaço adequado, estrutura física, recursos humanos, educação, formação. Não é simples fazer um atendimento e manter um sistema de proteção. Outra dificuldade é manter as fronteiras que a lei exige em situações de violência.

Temos casos de homens que estavam presos, mulheres que fizeram denúncias, ficaram em casas de abrigo e depois de três meses a mulher voltou pra casa e o companheiro foi lá e a matou. Por que isso acontece? Porque o homem não teve acompanhamento psicológico nem apoio familiar. O homem é preso, mas quem o trata? Ele precisa ser tratado porque o comportamento dele é consequência de um modelo de poder baseado no revide, na honra. Eles se acham os donos da casa, dos pais, dos filhos. Não batem apenas na mulher. Agridem os filhos, os irmãos, os pais. São dependentes de álcool e de drogas e têm pouca visão de si mesmo. Pouco sabem da sua construção como homens, têm uma história familiar complexa em termos de violência. É fundamental termos medidas protetivas, mas também é necessário tratar esse homem. É necessário construir outros modelos de masculinidade.

O governo do Paraná anunciou a criação da Coordenação das Delegacias da Mulher (Codem) para melhorar as condições de trabalho dos servidores. Qual é o impacto dessa medida na qualidade do atendimento às vítimas?

É absolutamente necessária. Está prevista na Constituição, na Lei Maria da Penha e o governo deveria ter feito isso há muito tempo. Não é um favor para a sociedade, é uma obrigação e uma condição para se constituir cidadania. A Lei Maria da Penha precisa ser expandida. Não dá para abrir somente uma coordenadoria, uma secretaria. É preciso abranger todas as esferas e todos os municípios, inclusive com profissionais capacitados para atendimento às mulheres e aos homens também. A legislação prevê um número enorme de ações, que têm que ser traduzidas em estratégias de proteção, de intervenção. O governo não está fazendo nenhum favor.

Quais os avanços alcançados na proteção à mulher e na punição aos homens violentos a partir da Lei Maria da Penha?

A lei possibilitou ações que não eram garantidas. Isso é importante para estimular ações preventivas e conscientizadoras e para apoiar e desenvolver estudos de diagnóstico sobre a situação da mulher. Também para estabelecer parcerias com as secretarias em programas de formação e treinamento de servidores municipais, estaduais e federais para atuar frente ao problema da violência, para formular e executar políticas de ação preventiva. São ações que sem a Lei Maria da Penha dificilmente seriam feitas.

A Lei Maria da Penha foi pensada de forma estratégica para atingir a saúde, a assistência social, a justiça, a educação, o trabalho, a segurança. Agora, criar uma secretaria é um ponto pequeno, importante, mas é apenas um ponto. A partir daí tem que criar mais braços, porque a violência está em toda a parte. E o enfrentamento da violência precisa ganhar as dimensões previstas legalmente, que são federais, estaduais e municipais. De uma maneira racionalizada, com políticas públicas integradas. A lei vem criando as condições em muitos lugares para programas de reeducação, de controle, de proteção, inclusive, para as crianças, que sempre estão envolvidas nessas histórias.

Fonte: Folha de Londrina, 04 de fevereiro de 2013