Barraco improvisado, carne no varal, banheiro no mato: 17 resgatados em situação de escravidão

13 de dezembro de 2019

Em três municípios, fiscais flagraram diversas irregularidades. A chamada “escravidão moderna” se caracteriza por trabalhos forçados, jornadas exaustivas e condições degradantes.

 

 
Fiscais flagraram péssimas condições impostas a trabalhadores contratados para produção de carvão vegetal e outros serviços – FOTOS MPT/MONTAGEM RBA

 

Em operação que envolveu diversos organismos públicos, 17 trabalhadores em situação análoga à escravidão foram resgatados no interior de Mato Grosso do Sul. Segundo o Ministério Público do Trabalho (MPT), essas pessoas, sendo uma delas de origem paraguaia, haviam sido contratadas para a produção de cartão vegetal e para construção de cercas e casas.

A inspeção percorreu, dos dias 2 a 6, fazendas na região sudoeste do estado, em áreas dos municípios de Bela Vista, Caracol e Porto Murtinho. Nesse último local, diz o MPT, em propriedades rurais próximas os trabalhadores estavam alojados em barracos improvisados, feitos com lona e galhos de árvores. A operação também envolveu o Ministério Público Federal (MPF), a Superintendência Regional do Trabalho e a Polícia Militar Ambiental.

“Não havia iluminação e precárias estruturas de madeira montadas no chão de terra serviam como cama. Devido à ausência de banheiro, os trabalhadores tinham que fazer suas necessidades fisiológicas no mato”, relata o MPT. “A água utilizada para consumo, banho e preparo de alimentos era colhida de um córrego adjacente à área onde estavam, por meio de galões de lubrificantes. Armazenada em garrafas PET, apresentava aspecto turvo e barroso. Além disso, pela falta de energia elétrica, as carnes ficavam penduradas em varais para secar, sujeitando-se ao contato com sujeira e contaminantes diversos.”

 

Nem R$ 500 em dois meses

Já em Caracol, um trabalhador contou que estava havia dois meses na fazenda e recebia R$ 18 por forno de carvão – havia 23. Naquele período, não chegou a receber R$ 500 e também não conseguiu voltar a seu município de origem, Bela Vista. A fiscalização apontou descaso com as condições de saúde e segurança.

Por fim, em Bela Vista, foram constatadas “graves infrações trabalhistas” na produção do carvão vegetal. “Assim como em Caracol, parte dessas irregularidades foi classificada pelo Ministério Público do Trabalho como reincidente, já que, em 2013, o mesmo empregador de ambas as fazendas firmou Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) em que se comprometeu a cumprir uma série de regras relativas ao meio ambiente laboral, por ocasião de diligência, que constatou diversas violações de normas trabalhistas em outra carvoaria pertencente a ele”, diz o MPT, que em 2015 ajuizou ação para que o empregador cumprisse o estabelecido no TAC.

O Ministério Público lembra que até o século 19 a figura do trabalhador escravo estava associada a instrumentos como pelourinhos, açoites e grilhões, mas que atualmente os “flagelos físicos” não servem mais como parâmetros para identificar a prática. “Agora o indivíduo tem sua autonomia restringida por circunstâncias de trabalho que, de tão humilhantes, suprimem sua dignidade enquanto pessoa.”

 

Escravidão moderna

No caso de Mato Grosso do Sul, “a escravidão moderna se concentra no meio rural e pode ser reconhecida quando constatada a submissão a trabalhos forçados, a jornadas exaustivas, a condições degradantes de trabalho ou a servidões por dívida”. O MPT acrescenta: “Trata-se de formas de exploração que violentam a própria natureza humana dos trabalhadores, ao subtraírem os mais básicos direitos, como alimentação, higiene e exercício de um trabalho digno”.

De 2003 a 2018, mais de 2.600 pessoas foram resgatadas em condições análogas às de escravo apenas em Mato Grosso do Sul, segundo dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas,  do MPT e da Organização Internacional do Trabalho (OIT) Brasil. Em torno de 60% delas se declararam analfabetas. A maioria é do sexo masculino, com idade que varia entre 18 e 24 anos. Quase 90% das vítimas eram trabalhadores agropecuários.”

O órgão lembra ainda que em 2016 a Corte Interamericana de Direitos Humanos responsabilizou o Estado brasileiro por não prevenir a prática de trabalho escravo moderno e de tráfico de pessoas. A sentença foi relativa a um processo envolvendo a Fazenda Brasil Verde, no sul do Pará. “O Brasil foi o primeiro país condenado pela OEA nessa matéria”, ressalta o Ministério Público.

 

RBA, 13 de dezembro de 2019