Como Bolsonaro tenta legalizar o trabalho escravo

2 de agosto de 2019

Ao defender flexibilizar regras na legislação de trabalho análogo à escravidão, o presidente Jair Bolsonaro cometeu uma série de equívocos nesta semana. Ele citou exemplos do que considera condição análoga à escrava que não se enquadram nas definições previstas no Código Penal e afirmou que são feitas avaliações “subjetivas” por quem fiscaliza e autua. A opinião é contestada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).

 

 

 

Para o coordenador da campanha nacional de combate ao trabalho escravo da CPT, Xavier Plassat, há “má fé” e “desconhecimento extremado” do presidentePara o coordenador da campanha nacional de combate ao trabalho escravo da CPT, Xavier Plassat, há “má fé” e “desconhecimento extremado” do presidente

 

“Tem juristas que entendem que trabalho análogo à escravidão também é escravo”, disse o presidente na terça-feira (30). Ele criticou a previsão legal de expropriação de propriedade rural com base, segundo ele, em “espessura do colchão, recinto com ventilação inadequada, roupa de cama rasgada, copo desbeiçado, entre outras 200 especificações”. E completou: “o cidadão vai perder a fazenda, se não for para a cadeia. Quem tem coragem de investir em um país desse?”.

Ao HuffPost, a procuradora Catarina von Zuben, coordenadora nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, do MPT, explicou que, para caracterizar “situação análoga à escravidão”, uma ou mais das condições descritas no artigo 149 do Código Penal devem ser constatadas. O texto não tem “200 especificações”, como disse o presidente:

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

Ela contou já ter acompanhado uma série de fiscalizações nas quais se encontraram trabalhadores nessas condições. “Quando o auditor do trabalho vê qualquer uma das situações descritas, ele lavra o auto de infração e, no contexto do auto, coloca tudo o que consta [no local], inclusive questões acessórias, pendulares. O resgate de uma pessoa não é algo corriqueiro. Exige uma análise criteriosa, que nunca é feita com base em subjetividade”, completou Catarina von Zuben. Por questões acessórias, a procuradora se referiu aos exemplos que o presidente citou, como “espessura de colchões e roupa de cama rasgada”.

Para o coordenador da campanha nacional de combate ao trabalho escravo da CPT, Xavier Plassat, há “má fé” e “desconhecimento extremado” do presidente. “Nenhum caso de trabalho escravo foi considerado como tal a partir de caracteres como esses citados [por ele]”, afirmou ao HuffPost. A pena prevista para quem reduz um trabalhador à condição análoga à escravidão é de 2 anos e 8 meses e multa.

 

Código Penal

“Excesso de regulamentação leva à paralisação da economia. E nós estávamos, sim, cada vez mais paralisados e engessados e tínhamos que mudar isso daí”, disse o presidente, que defende revisão das normas em vigor. Para Jair Bolsonaro, as definições do que são consideradas situações análogas à escravidão previstas no Código Penal não deixam claro o que se pode tipificar nesse entendimento. Por isso, ele quer “retirar a subjetividade da norma”.

Quando falou sobre isso, o presidente estava acompanhado do secretário especial da Previdência e Trabalho, Rogério Marinho. Segundo este, as mudanças pretendidas pelo chefe estão em estudo e devem ser discutidas com o Congresso no segundo semestre. Procurada pelo HuffPost ao longo da quarta-feira (31), a Secretaria Especial não respondeu quais são as alterações em análise, nem em qual estágio estão as avaliações a que o secretário se referiu.

No Congresso, o HuffPost apurou com lideranças das duas Casas que assunto não está entre as prioridades para o início do semestre, quando o foco seguirá sobre as pautas econômicas, com as reformas da Previdência e Tributária. Além de querer alterar o Código Penal, Bolsonaro também pretende mudar regras previstas no artigo 243 da Constituição Federal, que foram estabelecidas em 2014, quando o Congresso aprovou uma emenda constitucional em que determina a expropriação da propriedade, seja urbana ou rural, em que se encontrarem “culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo”.

Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.

Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei.

 

Legislação eficiente e pioneira 

Xavier Plassat, da CPT – entidade que atua no combate ao trabalho escravo há quase 50 anos –, está acostumado à batalha pela melhoria na legislação. “Estamos numa guerra de trincheira sobre esse tema há anos. Claro que hoje temos um presidente que assume publicamente [ser contra] essa batalha. Mas vai encontrar obstáculos e adversários firmes [se tentar mudar as leis].” Ele lembra que as cortes internacionais de direitos humanos têm entendimento oposto ao que o presidente pretende adotar no Brasil.

A procuradora Catarina von Zuben defende as normas vigentes e frisa que as condições degradantes, previstas na legislação, afrontam a dignidade da pessoa. “A jornada exaustiva é uma sobrecarga de trabalho que coloca em risco a vida do trabalhador. O trabalho forçado caracteriza-se pelo engano; a pessoa é colocada em isolamento geográfico, ou há retenção de documentos, ameaça da família para impedir fuga, há até casos em que se marca como gado, ou tudo isso junto. E há ainda casos em que se impede que a pessoa vá embora por dívida, uma situação constante de servidão, com cobranças muito altas que a pessoa nunca consegue pagar”, enumerou a coordenadora do núcleo de erradicação ao trabalho escravo do MPT.

Segundo Catarina von Zuben, a legislação brasileira é eficiente “do ponto de vista formal”. “É das mais pioneiras, mais transparentes. O que precisa é de política pública de implementação”. De 2003 a 2018, 45.028 pessoas foram resgatadas de condições forçadas de trabalho. O ano com maior número de resgates de trabalho escravo foi 2007, com 5.099 pessoas retiradas dessa situação. As informações são do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas.

 

Vermelho, 02 de agosto de 2019