Escravidão encontrou alicerce na própria legislação brasileira

14 de maio de 2019

OPINIÃO

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O Direito é um fenômeno cultural que, ao mesmo tempo em que é criado pelo ser humano para poder viver em sociedade, também serve para limitar as condutas dos destinatários das normas jurídicas.

Entretanto, o Direito não pretende apenas descrever o mundo como ele é ou como funciona, trata-se de peculiar linguagem que almeja alterar a realidade pelo uso do discurso prescritivo, que carrega consigo a lógica do dever-ser.

Portanto, a norma jurídica traz consigo não apenas a pretensão de que os membros de uma coletividade ajam de uma determinada forma: o Direito construído pelo grupo majoritário almeja não apenas interferir, mas comandar a própria sociedade.

Perdigão Malheiro, procurador da Fazenda e jurista do século XIX, havia percebido que a escravidão tinha seus alicerces no próprio Direito: “[…] a escravidão deve sua existência e conservação exclusivamente à lei positiva, é evidente que ela a pode extinguir”. Igual percepção a do jurista britânico Lord Mansfield: “[…] fora da lei positiva não é possível conceber a escravidão”.

Ou seja, os grilhões primordiais que permitiam submeter milhões de homens e mulheres à cruel realidade do cativeiro encontravam alicerce na própria legislação.

Apesar de não existir um Código Negro no Brasil, como ocorria nas colônias francesas (um diploma legal que viesse a consolidar as normas referentes a tráfico, comércio de escravos, sanções, trabalho e cativeiro etc.), havia um arcabouço jurídico que dispunha sobre escravos.

Teixeira de Freitas, na Consolidações das Leis Civis (1857), omitiu as normas que regiam a escravidão, não porque elas não existissem no Brasil, mas porque representavam uma indignidade para o país, ou seja, não queria ser o autor indiretamente de um abominável Código Negro que viesse a consolidar tais odiosas regras:

“Cumpre advertir que não há um só lugar do nosso texto, onde se trate de escravos. Temos, é verdade, a escravidão entre nós; mas esse mal é uma exceção que lamentamos, condenada a extinguir-se em época mais ou menos remota, façamos também uma exceção, um capítulo avulso na reforma das nossas Leis civis; não as maculemos com disposições vergonhosas, que não podem servir para a posteridade; fique o estado de liberdade sem o seu correlativo odioso. As leis concernentes à escravidão (que não são muitas) serão pois classificadas à parte e formarão o nosso Código negro”.

Se a escravidão se alicerçava em uma construção jurídica, a alforria também poderia ser alcançada, no Império do Brasil, por meio das Ações de Liberdade, em que os órgãos do Judiciário intervinham diretamente na relação de propriedade sobre o escravo, já que estava em discussão a própria legalidade desse odioso vínculo.

Luiz Gama, um ex-escravo, cuja trajetória de vida admirável serviu de inspiração para os abolicionistas, foi um dos grandes juristas que, se valendo das ações de liberdade, conseguiu obter judicialmente a alforria de centenas de cativos.

Faleceu sem ver a escravidão abolida no Brasil.

 

André Emmanuel Batista Barreto Campello é procurador da Fazenda Nacional, membro do Conselho Superior da Advocacia-Geral da União e autor do livro Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil. Foi advogado da União, procurador federal e analista judiciário.

 

Conjur, 14 de maio de 2019