Leonardo Sakamoto
Se cortes de custos e revogação de leis de proteção à saúde e segurança dos trabalhadores gerasse empregos decentes, não seguiríamos com uma taxa de desocupação de 12% neste momento. Nas peças publicitárias, nos releases à imprensa, nas entrevistas em programas de TV, vendeu-se que a Reforma Trabalhista removeria todos os “entraves” para que uma torrente de leite e mel corresse pelo meio-fio das ruas e avenidas nas grandes cidades brasileiras e pelas estradas de chão no campo. E, galopando por elas, brilhantes unicórnios vomitariam arco-íris perfumados sobre as contas bancárias dos mais pobres.
Até agora, os únicos unicórnios vistos foram nas fantasias dos blocos de Carnaval. Aqueles movidos a golden shower, na opinião do presidente da República. Agora, o mesmo discurso é usado com a Reforma da Previdência. O país precisa de uma revisão de seu sistema de aposentadorias, dos regimes privado e público, considerando que estamos vivendo mais e tendo em vista nossos problemas fiscais. Não faço coro de que mudanças não são necessárias, mas de que uma discussão democrática, com a participação de governo, empresários, trabalhadores e sociedade, sem açodamento, é a condição para tanto.
E que os mais pobres, como idosos em condição de miserabilidade, trabalhadores rurais e pensionistas não podem ser prejudicados. O que é inadmissível é que a mesma chantagem que foi aplicada, dia e noite, durante o governo Michel Temer em nome das duas reformas reapareça usando o mesmo argumento com a cara mais lavada deste mundo. A aprovação da Reforma da Previdência pode aumentar o nível de confiança na economia, claro. Mas ao afirmar que a geração de empregos depende única e exclusivamente dela, o governo federal simplesmente emite um atestado de que não conta com outras políticas de estímulo ao crescimento econômico que atuem em paralelo a esse processo.
Se é assim, para que concorreu à Presidência da República? O PIB cresceu menos que o esperado, os empresários não tiveram confiança para investir, a greve dos caminheiros parou o país, as eleições geraram incerteza, o mercado consumidor não reagiu e as políticas públicas não foram suficientes para fazê-lo reagir – há uma série de justificativas para explicar a situação. Mesmo o mísero aumento de 529 mil vagas formais em 2018, segundo o Caged, deve-se mais à retomada muito lenta da economia (com os pibinhos de 1,1%, de 2017 e 2018) do que à Reforma Trabalhista.
A taxa de desemprego tem caído lentamente apoiada, principalmente, no crescimento do trabalho informal e daquele por conta própria – como o aumento da venda de comida na rua. Ou seja, pessoas que perderam emprego vendem alimentação como ambulantes a pessoas que não podem mais pagar a conta em uma lanchonete ou restaurante. É o Brasil rumo à precariedade. Mas há quem bata palmas dizendo que isso é “empreendedorismo”. Discute-se, e com razão, o estelionato eleitoral do governo Dilma Rousseff ao colocar em prática, no início de seu segundo governo, políticas econômicas que ela não havia prometido em campanha.
Porém, o estelionato político da Reforma Trabalhista é algo do qual raramente se fala. E nesse vácuo de autocrítica, outro já se apresenta outro. Em momentos de crise econômica, discute-se como reduzir os direitos para evitar diminuição de crescimento. Em momentos de pujança, discute-se como reduzir os direitos trabalhistas para crescer mais rápido e garantir competitividade em um mercado global. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
Em outras palavras, há um recado tocando em uma vitrola velha, sem parar, dizendo “se você nasceu trabalhador, sua hora vai chegar, mas só amanhã”. Quantos postos de trabalho que são fechados durante uma crise econômica dizem respeito diretamente à crise econômica? E quantos vão embora de carona para o velho e conhecido ajuste de produtividade? Reestruturação que, em alguns casos, já estava pensada há tempos, esperando o momento. O governo Jair Bolsonaro está propondo uma Reforma Trabalhista 2 – A Missão escondida dentro da Reforma da Previdência.
Por exemplo, propõe a desobrigação de pagamento de FGTS para aposentados que continuem trabalhando. Ao mesmo tempo, a equipe econômica se coça para aprovar um regime alternativo aos jovens que entrarem no mercado de trabalho. Nele, o contrato individual prevalece sobre a CLT. Na prática, os ingressantes poderão ser contratados sem as mesmas proteções à sua saúde e segurança e sem os mesmos benefícios previstos no acordo coletivo de sua categoria. É consenso que a livre elaboração de um contrato, com direitos e deveres de ambas as partes postos na mesa de forma igual e equilibrada, é a situação ideal.
Na prática, contudo, um contrato individual pode ser firmado tanto em benefício do trabalhador quanto em seu prejuízo – neste último caso, envolvendo, principalmente, indivíduos economicamente vulneráveis. Nesse sentido, sem as balizas da lei e o apoio de um sindicato (honesto), a livre negociação de um contrato entre um trabalhador e um empregador é possível quando ambos contam com a mesma força no momento de assinatura de um contrato – situação que, na verdade, é assimétrica a favor do empregador na maioria das vezes. Em suma, vai feder pra molecada.
A discussão da Reforma da Previdência deve ser feita de forma séria e tranquila, sem promessas de que todos verão unicórnios de luz, comerão maná que cai do céu ou presenciarão o país entrar em situação de pleno emprego com sua aprovação. De fantasia, já basta o que aparece, de tempos em tempos, no Twitter de membros do governo.
Blog do Sakamoto, 11 de março de 2019