MP de Bolsonaro aceita corte de trabalhador infectado por coronavírus

25 de março de 2020

Além de acabar com estabilidade do trabalhador, medida provisória do governo pode incentivar que empresas não dispensem seus funcionários para o home office.

 

(Foto: Getty Images)

“Me sinto um criminoso, de sair na rua, pegar metrô, de ser um vetor. Já pensou se eu transmito o vírus pra minha mãe?”. João (nome fictício) é economista e, portanto, poderia trabalhar de casa, mas está sendo obrigado pela empresa a ir ao escritório. Além do medo de pegar a covid-19 e de ser obrigado a infringir as recomendações de saúde de ficar em casa, ele não sabe que, se contrair o vírus no trabalho, pode ser demitido assim que voltar da licença médica. Foi justamente este um dos precedentes permitidos pela medida provisória (MP) 927/2020, publicada neste domingo (22) pelo governo e que prevê flexibilizações trabalhistas em tempos de pandemia.

O texto gerou fortes críticas não apenas nas redes sociais, mas também do Ministério Público do Trabalho, de associações de juristas e inclusive do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, por permitir, entre outras mudanças, que empresas possam suspender por quatro meses contrato e salário de seus funcionários, deixando os sem rendimentos. Após repercussão negativa, Bolsonaro recuou e postou nas redes sociais que “determinou a revogação” do artigo 18 (o que permitia a suspensão). No entanto, nenhuma alteração oficial ao texto ainda foi feita – e, pela mensagem do presidente, os demais pontos da MP não serão alterados. 

Um deles, o artigo 29, afirma que os “casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais”, ou seja, não serão considerados acidentes ou doenças de trabalho, exceto quando o trabalhador conseguir comprovar que essa contaminação aconteceu no escritório, comércio ou fábrica.

egundo especialistas trabalhistas ouvidos pela Repórter Brasil, a relação entre a doença e o ambiente de trabalho é um dos poucos casos hoje em que o trabalhador possui garantia de estabilidade no emprego – após retornar da licença médica, ele não pode ser demitido durante 12 meses. Ou seja, ao dificultar a responsabilização da empresa, o governo abre a porta para a demissão justo em um momento de possível crise econômica generalizada.

“Todas as pessoas que não têm escolha de parar de trabalhar, como um porteiro, terão que comprovar que adquiriram o vírus no trabalho. Mas é complicado comprovar porque é uma doença viral, e o corpo elimina o vírus depois de um tempo”, analisa Valdete Souto Severo, presidente da Associação de Juízes para a Democracia.

Além de retirar direitos do trabalhador, a MP incentiva que empresas continuem em funcionamento normal e colocando seus trabalhadores em risco. “Esse artigo mostra para quem a lei foi feita: para a classe patronal. É como se o governo estivesse dando um salvo-conduto para a empresa: ‘coloca esse trabalhador em exposição’”, afirma Severo.

O advogado trabalhista Fernando José Hirsch, sócio do escritório LBS Advogados, concorda. “É uma medida para proteger o empresário, para fazer com que as empresas funcionem, o que é o inverso do que seria recomendado do ponto de vista da saúde”, afirma. Em caso de contaminação no escritório, o trabalhador poderia alegar que adquiriu o vírus por ser impedido de fazer quarentena, afirma Hirsch, mas vai precisar demonstrar que estava sem máscara, que não tinha álcool em gel e que a contaminação não ocorreu em outro lugar, o que não é tão simples. 

Ao tornar subjetiva a responsabilização da empresa em caso de contaminação, a MP também tem grave impacto nos casos de mortos em decorrência do vírus, já que dificulta a obtenção de indenização na Justiça. Isso afeta não apenas as famílias de funcionários contaminados, mas também aquelas em que algum membro do grupo de risco morreu após ser exposto a um trabalhador infectado em ambiente profissional. “A família fica totalmente sem respaldo e isso vai na contramão do que decidiu o Supremo Tribunal Federal recentemente em relação a esta questão da responsabilidade do empregador por dano decorrente por doenças no trabalho ou exposição a riscos. A responsabilidade é objetiva do empregador, segundo o STF”, analisa a presidente da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas (Abrat), Alessandra Camarano Martins.

 

Vermelho, 25 de março de 2020