O que fazer num país que elimina empregos formais e direitos básicos?

22 de novembro de 2019

A retomada da iniciativa do projeto neoliberal no Brasil, que se dá de forma autoritária, a partir do afastamento ilegal da presidenta Dilma e da condenação também ilegal do presidente Lula, impôs uma nova agenda para as relações entre o capital e o trabalho. Esta nova agenda neoliberal interrompe um período de maior e melhor distribuição da renda nacional.

Por Antônio Vicente Martins e Miguel Rossetto*

 

 

  

 

Em um ambiente de crescimento econômico com políticas de valorização do salário mínimo, da ampliação dos empregos formalizados e com o fortalecimento dos sindicatos e das negociações coletivas, os trabalhadores se apropriaram de uma parcela maior da renda nacional gerada.

A agenda de Temer/Bolsonaro tem como prioridade reorganizar, a favor do capital, o padrão de ganho – da mais-valia – extraída da relação entre os trabalhadores e as empresas. Para ampliar as margens de lucro do capital, é necessário reduzir o “custo do trabalho”. O símbolo desta iniciativa é a Reforma Trabalhista de Temer, a Lei nº 13467, de novembro de 2017.

Esta lei, aprovada em tempo recorde no Congresso Nacional, sem uma discussão ampla com a sociedade, concentra um conjunto de iniciativas agressivas contra os direitos trabalhistas existentes, altera ou revoga mais de cem artigos da CLT, estimulando contratos de trabalho precários, intermitentes, terceirizados. Promove também um duríssimo ataque aos sindicatos através do estrangulamento financeiro destas entidades, afasta os trabalhadores demitidos dos sindicatos quando elimina a obrigatoriedade da homologação da rescisão do contrato de trabalho no sindicato, estimulando ainda mais a fraude trabalhista como prática empresarial.

Ao mesmo tempo, a denominada Reforma pretende impor uma enorme restrição aos trabalhadores de acessarem a Justiça do Trabalho, na medida em que restringe o acesso a justiça gratuita no processo trabalhista e cria a figura de sucumbência para os trabalhadores em caso de julgamento da improcedência de seus pedidos. Quem arrisca?

Os efeitos deletérios destas mudanças, já são demonstrados por vários estudos que demonstram a violação de direitos básicos dos trabalhadores e a inexistência de aumento de empregos na economia.

Em janeiro de 2019, o governo Bolsonaro assume. Entre suas primeiras iniciativas, verdadeiro pilar ideológico, está o fim do Ministério do Trabalho. O Ministério do Trabalho foi criado em 1930, por Getúlio Vargas, e se manteve de forma ininterrupta por 89 anos. O fim do Ministério do Trabalho sinaliza de forma cristalina uma política de subordinação institucional da agenda do trabalho ao ultraliberal Ministério da Economia. A designação como secretário executivo da nova pasta do articulador político da reforma trabalhista do governo Temer era revelador do que viria pela frente.

 

Os efeitos da reforma da Previdência

Na medida em que amplia o tempo de trabalho e a idade para a aposentadoria e reduz enormemente a salário do aposentado, a reforma da Previdência certamente vai “segurar” no mercado de trabalho parcela importante dos trabalhadores, que nas condições atuais sairiam deste mercado como aposentados. Como consequência, ampliará ainda mais a oferta de mão de obra em um mercado que hoje não consegue assegurar trabalho e emprego, permitindo maior redução nos níveis dos salários. E surgem mais iniciativas do governo sempre na mesma direção precarizante do trabalho e seus atores.

Entre as iniciativas do governo, o fim da política de valorização do salário mínimo, a apresentação da MP 881, convertida na chamada Lei da Liberdade Econômica e a MP 905, de novembro de 2019, anunciada cinicamente como um programa de emprego “verde e amarelo”, são em realidade textos de destruição de direitos trabalhistas, de limitação na fiscalização do trabalho e restrições as atividades do MPT. A MP 905 promove de imediato a alteração em 59 artigos da CLT e revoga 37 dispositivos celetistas.

Ao mesmo tempo, o governa abre uma agenda de revisão das normas de saúde e segurança no trabalho, com declarado objetivo de “redução” dos custos empresariais. Neste mesmo período é apresentado projeto por parlamentares vinculados ao governo, de extinção da Justiça do Trabalho. Tudo aponta para uma ideologia de eliminação de direitos básicos, retomando relações de trabalho que poderiam ser vividas na primeira metade do século passado.

No entanto, a virulência destruidora deste governo não se detém. Em setembro de 2019, Bolsonaro, através do Ministério da Economia, institui o Gaet (Grupo de Altos Estudos do Trabalho) com a tarefa de “avaliar o mercado de trabalho brasileiro sob a ótica da modernização das relações trabalhistas e matérias correlatas”. A agenda das propostas, divididas em quatro temas, revela a ambição governista: economia e trabalho; direito do trabalho e segurança jurídica; trabalho e previdência e liberdade sindical.

Este grupo deve apresentar suas propostas até a abertura dos trabalhos legislativos, no inicio de 2020. Fica evidente a intenção de dar continuidade a esta profunda reorganização nas relações de trabalho no Brasil, através de uma ampla agenda, que envolve a destruição do sistema de relações de trabalho existente, constituído por instituições, leis, normas que, mesmo insuficientes, ao longo do tempo se constituíram em um patrimônio politico da classe trabalhadora brasileira.

Não sem razão é objeto de eliminação pelo capital, que busca com estes movimentos ampliar seus ganhos, seu poder politico e desorganizar a classe trabalhadora. Bolsonaro é um agente deste programa. Este processo não terminou. A agenda e os prazos anunciados para o Gaet e a própria MP 905 são reveladores desta intenção. Parece-nos evidente que o movimento sindical, os partidos de esquerda, os defensores do civilizatório direito do trabalho, devem buscar, de forma decidida, uma sólida unidade de ação para enfrentar em conjunto esta agenda.

É no “mundo do trabalho” que se decide a maior ou menor concentração de renda de uma sociedade e é, portanto em torno da regulamentação deste mercado que se trava uma intensa disputa politica, onde o papel que o Estado assume é de importância decisiva. E este “mundo do trabalho” no Brasil é o resultado da construção de uma nação marcado pela violência da sua classe dominante contra a população indígena, negra escravizada e imigrante empobrecida. Um enorme e estrutural excedente de mão de obra disponível produziu a condição política favorável a uma exploração brutal deste trabalho por parte das elites econômicas.

Alto desemprego e informalidade, condições precárias de trabalho e sem cobertura legal, alta rotatividade, baixos salários, exclusão, são as marcas deste mundo do trabalho no País. Diante deste quadro, não nos parece suficiente concentrar a energia do movimento sindical na discussão da agenda de “organização sindical a partir do fim da unicidade”. Por óbvio, esta é uma agenda decisiva, mas é fundamental localizar este debate na disputa do conjunto das questões vinculadas às relações de trabalho no Brasil e organizar uma estratégia de combate a partir das definições necessárias para um novo sistema democrático e justo para as relações.

É preciso que se responda às necessidades do conjunto da classe trabalhadora. Nossa experiência demonstra que o Estado é capaz e deve impor regras e disciplinar o capital nativo e equilibrar minimamente as relações entre o trabalho e o capital. O problema, desde o ponto de vista dos trabalhadores, portanto, não é a presença do Estado, mas, sim, como ele se apresenta.

Uma estratégia correta não deve prescindir de disputar este Estado, as regras e normas que ele é capaz de assegurar, aliás, a exemplo do que o capital faz. Seria uma ingenuidade, como diz Braudel, imaginar que o capitalismo é só um “sistema econômico”, é também um sistema político: “Não devemos nos enganar, o Estado e o Capital são parceiros inseparáveis, ontem e hoje”.

Esta estratégia vai necessariamente combinar resistência para se opor à destruição de conquistas trabalhistas acumuladas em décadas de luta política, com a apresentação de iniciativas de organização sindical e novos marcos regulatórios que respondam as novas e diversas formas de organização do trabalho que o capital impõe, a partir das novas tecnologias disponíveis e das liberdades encontradas para estes movimentos.

Uma agenda desta natureza deverá ser debatida amplamente com os trabalhadores e o conjunto da sociedade e se constituir em um instrumento de politização e organização, capaz de permitir uma retomada de iniciativa popular na disputa politica nacional. As relações de trabalho pertencem ao universo que garante a dignidade humana e o papel do Estado é fundamental nesta regulação.

 

* Antônio Vicente Martins, advogado trabalhista, foi presidente da Agetra (Associação Gaúcha de Advogados Trabalhistas, gestão 2013-2015). Miguel Rossetto, sociólogo, foi ministro do Desenvolvimento Agrário e também do Trabalho

 

Vermelho, 22 denovembro de 2019