O direito ao descanso ou, dito de outra forma, a compatibilização de tempo de trabalho com ócio nem sempre foi bem compreendido na história das relações de trabalho ou em qualquer ramo de atividade. Ficar sem trabalhar desumaniza o homem que tem no trabalho e no tempo que a ele dedica uma forma de ganhar a vida ao encontro de possível felicidade. O tempo do homem teve direcionamento produtivo, e a ociosidade tem sido estigmatizada como tempo perdido. O trabalho se confunde com necessidade moral.
Os gregos consideravam que o trabalho de importância menor era destinado aos escravos, que funcionavam como o corpo e a mente prolongada do mestre. O tempo do escravo não lhe pertencia.
No documentário Quanto Tempo o Tempo Tem (2015), narrado por Fernanda Torres e dirigido por Adriana L. Dutra (e dedicado ao pai desta, José Ruy Dutra), o tempo é tratado de forma angustiante. Ao mesmo tempo chama a atenção para a passagem do ser humano no seu tempo de vida e sua finitude e a necessidade de revisão da forma pela qual se valoriza o tempo a ser utilizado com sabedoria. Confrontado com o mundo moderno, o homem pode perder a noção do gozo do tempo, vinculando-se a telas quase o tempo todo, sem quase fazer as pessoas olharem para seu companheiro de ônibus, de metrô ou de trabalho. Tudo se passa por vias indiretas como se não existisse vida além das informações frias, e algumas, desesperadas, se utilizam do mesmo instrumento para tentar despertar a solidariedade entre os humanos.
O tempo não é um produto que se engarrafa e se guarda para usar quando puder como pretendeu O vendedor de tempo, de Fernando Trias de Bes. O tempo é o que se tem de mais precioso aqui e agora e não permite revisão do que passou. Não se volta no tempo porque o que passou não mais existe, e o futuro ainda não chegou. Como diz o filósofo Francis Wolff, o tempo foi utilizado na origem como forma democrática convencional para que defesa e acusação tivessem o mesmo tempo de manifestação (ampulheta, por exemplo). O tempo é exigência política e social para inventar o tempo convencional.
No mundo capitalista do trabalho, o tempo foi apropriado como forma de valorizar a renúncia do tempo livre e subtraído daquele que teria o livre-arbítrio de sua utilização para impor critérios medidores de utilização do tempo. Na parte que se refere ao lazer, foi elevado à garantia social pelo Estado a todos os cidadãos. Nesse sentido, entre nós, o artigo 6º da Constituição Federal, ao tratar do direito ao lazer como direito social fundamental, daqueles tidos na sua verticalidade e na expectativa que venha a se expandir na horizontalidade, como efetiva garantia social, inquestionável. Seu exercício independe de lei ou condições para seu reconhecimento.
Nas relações trabalhistas, o tempo é o que mede a força de trabalho disponibilizada para o exercício de uma atividade profissional. Tudo se mede em tempo e se valoriza pelo tempo: é o valor do tempo de trabalho que fixa o custo de produtos e serviços cuja mais-valia permitirá a compra de mais tempo, proporcionando diretamente que um maior número de pessoas possa utilizar sua força de trabalho. O desemprego, nesse sentido, é perda de tempo da sociedade porque o Estado é incapaz de proporcionar tempo de valor aos trabalhadores. O seguro-desemprego é benefício previdenciário ao revés, ou seja, inverte-se o padrão da incapacidade do trabalhador para o benefício, a sociedade é que está doente e por essa razão paga ao trabalhador desempregado involuntariamente o benefício de subsistência na expectativa de que a economia se equilibre e o tempo volte ao seu valor na força de trabalho.
Ainda no campo das relações de trabalho, o direito ao gozo de tempo de ausência de trabalho e, portanto, de aposentadoria é conquistado pela venda do tempo após longo período. A aposentadoria, portanto, é o tempo de descanso adquirido e que pressupõe continuidade da vida e respectiva qualidade. Claro, nem sempre se passa dessa forma porque o sistema de custeio fundado no custo de vida provável se vê atualmente em cheque porque o que se arrecada não sustenta a longevidade dos aposentados, quebrando o princípio de solidariedade entre as gerações.
No campo trabalhista, o direito ao descanso semanal de 24 horas, exemplificativamente, foi assegurado pela CF de 1937, no artigo 137, “d”, e a CLT dispôs no mesmo sentido, acrescentando inclusive intervalo de 11 horas entre jornadas de trabalho. Tais direitos podem ser ditos fundamentais porque incondicionados e reconhecidos como tal.
Posteriormente, com o fim da Segunda Guerra Mundial e a queda do fascismo e do nazismo, empurrados pelas novas conquistas impostas pelos trabalhadores, o direito ao descanso semanal foi mantido como uma característica especial: deveria ser remunerado, princípio este absorvido pela Constituição Federal de 1946. Portanto, o que era um direito ao descanso passou à condição de valorização do tempo de descanso, abandonando a prática anterior de que somente se remunerava efetivamente o tempo de trabalho.
Somente três anos após a promulgação da Constituição Federal de 1946, a Lei 605/1949 regulamentou a forma pela qual o tempo de descanso seria remunerado e trouxe um aspecto razoável: a remuneração do descanso passou a compor o salário mensal de dias trabalhados e não trabalhados. Portanto, o descanso garantido de 24 horas teria uma compensação pelo tempo médio dispensado pelo trabalhador nos dias trabalhados.
Entretanto, a remuneração desse descanso ficou condicionada ao cumprimento da jornada da semana anterior, criando um paradoxo comparativamente ao direito fundamental ao lazer, este preservado e garantido a qualquer custo. O paradoxo é que o direito ao descanso semanal remunerado passou a ser um direito de conquista porque, se o trabalhador descumprir a duração do trabalho na semana, o direito ao remunerado do descanso semanal estará comprometido. Aqui, mesmo descumprida a duração do trabalho, o descanso semanal está assegurado sem o valor da remuneração respectiva.
O mesmo raciocínio é adequado para as férias anuais. Nesse caso, o direito fundamental ao lazer está condicionado ao trabalho de 12 meses, para mesmo empregador e, ainda, segundo escala de dias de folga de acordo com o número de faltas injustificadas ao serviço. De novo, para ter férias, o trabalhador deve conquistar, pois não se trata de direito incondicional. Trata-se de é um direito sujeito à perda por ato do empregado.
Por esses aspectos, não se pode ignorar a revolução dos meios de comunicação e a nova modalidade de utilização do tempo. Assim é que a evolução na forma de entrega de resultado de trabalho o desconsidera como fator preponderante porque o foco não é mais a venda de tempo, mas o serviço a ser executado e que pressupõe implicitamente sua adequação com o resultado, atribuindo ao prestador maior autonomia na utilização de seu tempo, personalíssimo e indisponível, até mesmo em relação ao Estado.
Paulo Sergio João é advogado e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Fundação Getulio Vargas.