Os efeitos letais da política econômica dos EUA pelo mundo

6 de junho de 2019

As consequências do panorama atual, aponta estudo, são o crescimento do abismo entre ricos e pobres.

 

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A economia dos Estados Unidos mostra há décadas perda de vitalidade e funcionamento em parte comprometido, revela o mais amplo diagnóstico realizado sobre a área. Planejado e coordenado pelo Roosevelt Institute, sob a direção do Nobel de Economia Joseph Stiglitz, o estudo contou com a participação de especialistas de dezenas de instituições entre universidades, think tanks, órgãos governamentais e entidades sindicais. O resultado exposto no livro Rewriting the Rules of the American Economy, ou Reescrevendo as Regras da Economia Americana, é tão preocupante quanto esclarecedor a respeito das origens e da gravidade da crise crônica estadunidense e mundial.

“As regras que moldam nossa economia atual foram informadas por uma ortodoxia que agora sabemos estar incorreta e desatualizada”, diagnostica o estudo. As política econômica do governo Ronald Reagan centrada em favorecer a oferta (supply side) levou não só à desregulamentação e à redução das alíquotas de impostos sobre os maiores rendimentos, mas a cortes nos programas de bem-estar social e nos investimentos públicos. 

“O resultado é que reduzimos as taxas de impostos para o topo e revogamos as regulamentações, mas os benefícios não gotejaram (trickle down) para os demais. Essas políticas aumentaram a riqueza para as maiores empresas e para os norte-americanos mais ricos, ampliaram a desigualdade econômica e não produziram o crescimento econômico que seus defensores prometeram.”

O sistema tributário, prossegue, “estimula a especulação em vez do trabalho, distorce a economia e serve aos interesses do 1% mais rico. Na política monetária e fiscal, a concentração excessiva no controle dos déficits orçamentários e da inflação, enquanto se ignoravam as reais ameaças à prosperidade econômica, que são a crescente desigualdade e o subinvestimento, resultou em maior desemprego, mais instabilidade e crescimento menor. Mudanças nas instituições, leis, regulamentos e normas do mercado de trabalho enfraqueceram o poder do trabalhador e dificultaram a compensação dos excessos de poder corporativo e de mercado.

O resultado foi um fosso crescente entre produtividade e salários, talvez o aspecto mais marcante da vida econômica americana no último terço de século. Nos 40 anos entre 1973 e 2013, a produtividade cresceu 161%, enquanto a remuneração aumentou apenas 19%”, destaca o Instituto Roosevelt. E ainda: “O mercado perpetua a transmissão da vantagem pelas gerações e a discriminação impediu que grandes populações desenvolvessem o próprio capital humano e acumulassem riqueza. Esta é uma imagem crua de um mundo que deu errado”.

A desigualdade crescente não é, entretanto, espontânea nem inevitável, chama atenção o trabalho. “A evidência mostra que os mercados não existem no vácuo: eles são moldados pelo nosso sistema legal e nossas instituições políticas. Também nos diz que podemos melhorar o desempenho econômico e reduzir a desigualdade ao mesmo tempo. Simplificando, a noção de que temos de escolher entre crescimento econômico ou prosperidade compartilhada para muitos americanos é falsa. Esta é uma boa notícia. A desigualdade no nível e do tipo que vemos hoje é uma escolha. Quando as regras não funcionam mais, é hora de reescrevê-las”.

Os salários para a maioria dos americanos estão estagnados, mas, no topo, os rendimentos dos executivos das empresas não financeiras e dos bancos disparam, sem melhora concomitante no desempenho das empresas pelas quais são responsáveis.

“Argumentava-se que os mercados de trabalho mais flexíveis trariam maior crescimento de empregos, mas isso não deu certo. Oitenta por cento do crescimento do emprego que vemos é em serviços com baixos salários e no varejo. Essa combinação de crescimento para os muito ricos e estagnação e ansiedade para o resto é politicamente volátil”, disparam os analistas.

O problema é nacional e mundial: “As regras internacionais do jogo também foram mudadas, frequentemente sob a influência das mesmas teorias econômicas equivocadas, refletindo as mesmas ideologias e interesses econômicos similares. Em alguns casos, a América tem sido vista como um modelo. Em outros, usou sua influência no Banco Mundial, no FMI, na OMC, no G-20 e em outras instituições internacionais para forçar o tipo de mudanças que levaram a mais desigualdade e pior desempenho econômico em outros países”.

O sistema financeiro, destaca o estudo, não serve mais ao conjunto da economia, mas a si mesmo. “As corporações deixaram de atender a todas as partes interessadas – trabalhadores, acionistas e administração – para servir apenas à alta administração sob o pretexto de aumentar o ‘valor para o acionista’. … O resultado foi um comportamento míope, subinvestimento em empregos e no futuro, baixo crescimento, preços mais altos e maior desigualdade.”

Os problemas da economia dos EUA foram exacerbados na Grande Recessão. O FED estima que os custos da crise financeira de 2008 chegaram a 40% a 90% do PIB de um ano, ou 16 trilhões de dólares em 2013. “A verdade incômoda é que, desde o início da desregulamentação financeira nos Estados Unidos e no mundo, crises financeiras aumentaram em frequência e severidade”, disparam os economistas do Instituto Roosevelt.

Desde os anos 1970, o setor financeiro aumentou seu lobby e os formuladores de políticas reduziram a regulamentação ante a promessa de que a finança se autorregularia, o que de fato ocorreu, mas numa direção perniciosa, removendo a separação entre bancos comerciais e de investimento, abolindo os tetos das taxas de depósito e as proibições de cobrança de taxas de juro escorchantes. Permitiu-se que os mercados financeiros escrevessem as próprias regras, por exemplo, nas operações com títulos que empacotavam as hipotecas, negociadas no segmento de mercado que desencadeou a crise de 2008. A participação da finança no PIB, a expansão dos lucros e o aumento da remuneração dos executivos atingiram recordes, mas a eficiência desabou.

O custo médio do setor financeiro dos EUA para fornecer um dólar de intermediação financeira, conectando poupadores com tomadores, aumentou de 1,6 centavo por dólar no fim da Segunda Guerra Mundial para 2,4 centavos por dólar em 2011, apesar dos avanços tecnológicos que deveriam ter reduzido significativamente os custos das transações. “É notável que, apesar de todo o crescimento da renda, dos lucros e do tamanho do setor financeiro, não possamos ver nenhuma melhora no desempenho da economia”, sublinham os responsáveis pelo trabalho.

Em lugar de fornecer o dinheiro necessário para a economia produtiva, o setor autogerido proporcionou remunerações recordes aos acionistas, frequentes reestruturações corporativas, fusões em massa e redução do investimento de capital, auxiliado pelas teorias dos economistas conservadores e por uma mudança nas regras do mercado, resultando em maior desigualdade e ameaça ao desempenho da economia a longo prazo.

Mesmo após a crise de 2008, quando não era fácil conseguir acesso ao crédito, as empresas continuaram a comprar de volta as próprias ações e a pagar dividendos em um nível muito alto. As corporações não financeiras nos EUA distribuíram 70% dos lucros corporativos antes de impostos, pagando aos acionistas na forma de recompras de ações e dividendos em 2014. Nos quatro trimestres anteriores ao colapso financeiro de setembro de 2008, elas gastaram, em média, 107% dos lucros comprando as próprias ações e pagando dividendos. No período Pós-Guerra, distribuíram, em média, 18% dos lucros aos acionistas. A outra face da aposta redobrada no jogo de baixo risco da recompra de ações foi a atrofia dos novos investimentos geradores de empregos e a redução da inovação.

O sufocamento da voz do trabalhador teve consequências nefastas para a economia. “Um ataque político sustentado, que remonta ao fim dos anos 1970, enfraqueceu os sindicatos e os direitos dos trabalhadores, enquanto as políticas trabalhistas não acompanharam as mudanças ocorridas no local de trabalho”, chamam atenção os autores do trabalho. Ao contrário do que diz o senso comum, “os sindicatos proporcionam uma força compensadora aos interesses corporativos, enquanto o enfraquecimento dessas entidades perturba o equilíbrio político de um país, bem como o equilíbrio econômico do poder, permitindo que os interesses corporativos atuem sem restrições”.

Nos Estados Unidos, a capacidade dos trabalhadores de se organizar diminuiu em consequência de uma campanha de décadas para barrar a sindicalização, restringir a atividade sindical e enfraquecer as leis trabalhistas. Resultado: a participação dos trabalhadores nos sindicatos caiu de mais de 30% em 1960 para 20% em 1984 e 11,1% em 2014. Estudos de vários países mostram que a perda de filiados conduziu a uma parte significativa da desigualdade salarial masculina e responde por 20% do aumento da desigualdade salarial de 1973 a 2007. Em paralelo ao declínio do sindicalismo, entre o fim da década de 1960 e o início da década de 1980, o número de comitês de ação política empresarial quadruplicou, enquanto o número de empresas com lobistas registrados saltou de 175 para 2.445.

Em 2014, o salário mínimo correspondeu a apenas 35% do salário médio por hora dos EUA, comparado a 53% no fim da década de 1960. Estimativas mostram que 10% de aumento do salário mínimo reduziria a pobreza em 2,4%. O enfraquecimento do salário mínimo é uma das principais causas do aumento da desigualdade na base da sociedade, especialmente para mulheres e negros em relação ao restante da força de trabalho.

A conclusão do Instituto Roosevelt é que “é impossível alterar a dinâmica de nossa economia distorcida sem medidas amplas, arrojadas e abrangentes. A agenda que oferecemos separa a rede de privilégios e incentivos que os lobistas de negócios e seus políticos integraram às regras da economia e de nossa sociedade e que afastaram as empresas do tipo de investimento produtivo que levaria a investimentos econômicos robustos e amplamente compartilhados. Enquanto o crescimento da economia se basear em bolhas financeiras e de procura de renda, não veremos o investimento em empresas, pessoas e infraestrutura necessárias para o crescimento sustentável”.

Uma parte das propostas do estudo visa restaurar as regras e instituições que garantem segurança e oportunidade para a classe média com a restauração do pleno emprego, investimento em infraestrutura pública, atualização e aplicação das regras que protegem os trabalhadores para garantir que os salários acompanhem a produtividade, redução dos obstáculos à participação no mercado de trabalho. As proposições incluem, entre outros pontos, proporcionar educação pública, saúde, cuidados infantis e serviços financeiros acessíveis e de qualidade, bem como a segurança de aposentadoria.

 

Vermelho, 06 e junho de 2019