Os limites à fiscalização do trabalho em prol da segurança jurídica

17 de maio de 2019

O Tribunal Superior do Trabalho, por ato do julgamento do Agravo em Recurso de Revista 115000-86.2009.5.18.0008, em 13 de março, declarou, conforme acórdão de lavra do ministro Cláudio Brandão, “legítima a atribuição conferida ao Auditor-Fiscal do Trabalho para lavrar os autos de infração e aplicar multas quando concluir pela invalidade de norma coletiva contrária à legislação e aos direitos trabalhistas”.

Com o referido fundamento, aquela corte superior conheceu e proveu recurso de revista interposto pela União para julgar improcedente a ação anulatória manejada contra auto de infração lavrado por auditor fiscal do trabalho que, concluindo pela ilegalidade de convenção coletiva do trabalho, afastou-a, aplicou retroativamente o mencionado entendimento e multou o empregador em R$ 171.504,95.

As convenções coletivas de trabalhos visam definir condições de trabalho específicas para a categoria, sendo celebradas pelos sindicatos laboral e patronal, com caráter normativo, devendo, como condição de validade, observar os requisitos do artigo 104 do Código Civil, os pressupostos formais e ser registradas perante o órgão regional do Secretaria de Trabalho do Ministério da Economia, entrando em vigor três dias após o seu depósito, nos termos dos artigos 611, 613, 614, parágrafo 1º, da Consolidação das Leis do Trabalho.

Uma vez verificado o registro, as convenções têm força cogente e caráter normativo, qualidade a qual impõe o seu cumprimento, oponível também ao serviço de inspeção do trabalho, a teor do disposto no artigo 11, inciso IV, da Lei 10.593/2002, e no artigo 1º, do Decreto 4.552/2002, que aprovou o Regulamento da Inspeção do Trabalho.

O imperativo das leis, base do Estado de Direito, estipula limites ao poder do Estado aos quais os auditores também estão submetidos.

Não obstante, casos como o apreciado pelo TST, aqui analisado, revelam chancela à sobreposição do serviço de inspeção do trabalho à autoridade jurisdicional e à ordem normativa a qual submetida, permitindo ao órgão avaliar, discricionariamente, as cláusulas das normas coletivas e aplicar aquelas que entender válidas e rechaçar as que, segundo seu livre convencimento imotivado e sem prévio aviso, julgar nulas.

E não se diga que a possibilidade de apreciação judicial posterior das sanções aplicadas pelos auditores fiscais em tal quadro permissivo é instrumento de controle apto a garantir a observância dos princípios constitucionais da legalidade, do contraditório e da ampla defesa, já que não raro é imposto pela Justiça do Trabalho, como condição para a suspensão da exigibilidade e da publicidade das multas, o depósito prévio integral do seu valor, com amparo no artigo 151, inciso II, do Código Tributário Nacional, não obstante serem créditos de natureza não tributária.

A despeito das razões da decisão do TST, entende-se não haver fundamento legal que permita ao serviço de inspeção do trabalho, por meio das superintendências regionais do trabalho, de ofício, negar validade a dispositivos de normas coletivas, muito menos com efeito ex tunc, a teor do princípio da legalidade administrativa a que submetido, nos termos do artigo 7º, inciso XXVI, e 37, caput, da Constituição Federal.

No que concerne às normas coletivas, inexiste nulidade de pleno de direito autodeclarável e que prescinda de pronunciamento judicial prévio, o que implica dizer que os acordos e as convenções coletivas de trabalho são válidos e imperativos, obrigando empregadores, empregados e o serviço de inspeção do trabalho, até que sobrevenha eventual declaração judicial de nulidade em sentido contrário.

Não se ignora a possibilidade de que normas coletivas, no tocante ao seu objeto, eventualmente violem os limites materiais legal e constitucionalmente impostos e sejam declaradas nulas judicialmente. O que não se concebe é que o empregador que tenha, de boa-fé, executado as previsões normativas coletivas a que imperativamente submetido seja, em função disso, surpreendido pela ação intempestiva da fiscalização do trabalho e penalizado.

As razões de decidir constante da decisão tomada no ARR 115000-86.2009.5.18.0008 confere aos auditores a autoridade de fazer de ofício o controle de legalidade e constitucionalidade de dispositivos de normas coletivas e afastá-las quando considerá-las ilegais e constitucionais e, assim, e penalizar toda e qualquer conduta baseada nos ditos instrumentos normativos reputados nulos, o que vem ocorrendo mesmo nos casos em que existente jurisprudência uniforme em sentido contrário.

Citem-se os precedentes afetos à legalidade de normas coletivas que tratam da flexibilização do prazo de pagamento da gratificação natalina, alterando o fracionamento de que trata o artigo 3º do Decreto 57.155/1965, para parcela única, geralmente prevista para o mês de dezembro de cada ano, como ocorre no segmento de vigilância. Não obstante a jurisprudência consolidada sobre o tema sobre a validade da norma, a fiscalização do trabalho segue afastando as CCTs que subsidiam a forma de pagamento do 13º salário para aplicar aos empregadores multas escorchantes, impelindo os empregadores a provocar a prestação jurisdicional e fazer o depósito prévio das penalidades para se verem desvencilhados do sancionamento injusto, como todos os custos daí inerentes.

Ainda que se avente a possibilidade de o serviço de inspeção do trabalho entender inválidos determinados dispositivos de normas coletivas, falta permissivo legal que autorize ao AFT aplicar o seu afastamento e considerar retroativamente tal entendimento para ancorar a punição administrativa, dado o imperativo do ato jurídico perfeito, segundo dicção dos artigos 6º, parágrafo 1º, e 24, caput e parágrafo único, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

A teor dos princípios ora suscitados, que garantem a proteção às pessoas, naturais e jurídicas, contra o poder do Estado, a lei não pode retroagir para afetar situações jurídicas já consolidadas. Com muito maior razão não pode uma decisão administrativa, sobretudo quando unilaterais e imotivadas, retroceder para revolver fatos já sedimentados a fim de tornar ilícita conduta patronal e amparar a autuação e a aplicação de penalidades administrativas, a teor do disposto no artigo 23, inciso I, do Decreto 4.552/2002, e artigo 23 da Lindb.

O empregador assume os riscos da atividade econômica, a teor do disposto no artigo 2º, da CLT, nos quais, no entanto, não se podem incluir aqueles derivados da ação fiscalizatória do Estado, sujeita, por óbvio, às limitações constitucionais e legais inerentes à sua atuação, que deve observar os princípios do ato jurídico perfeito e da segurança jurídica.

O Sistema Federal de Inspeção do Trabalho não foi concebido com fim de constituir risco adicional à atividade econômica, mas, sim, atuar segundo mínima previsibilidade, assim entendida a persecução da aplicação das normas constitucionais, legais, convenções internacionais ratificadas, os atos e decisões das autoridades competentes e as convenções, acordos e contratos coletivos de trabalho, nos termos do artigo 1º do Decreto 4.552/2002.

A segurança jurídica necessária à manifestação da livre-iniciativa e do empreendedorismo não pode conviver com a imprevisão perpetrada pela ação do próprio Estado, por meio da fiscalização do trabalho que, em casos como o aqui apreciado, vulneram o empregador e criam riscos atentatórios ao desenvolvimento nacional, pelo custo adicional derivado de tal inaceitável arbítrio.

 

Conjur, 17 de maio de 2019