No que se refere à proposta de reforma da previdência social brasileira (PEC/06/2019), é preciso afirmar ser ela tão injusta socialmente como débil do ponto de vista econômico; sua razão de fundo é apenas de ordem contábil-financeira, nada mais.
As primeiras medidas já tomadas pelo governo Bolsonaro, assim como aquelas em elaboração ou tramitação legislativa, notabilizam-se pela profunda arrogância e simplismo no trato de assuntos tão complexos como os são, por exemplo, os do crescimento econômico, das finanças públicas, do mercado de trabalho e das políticas sociais, apenas para ficarmos nos mais evidentes desde o golpe de 2016. Na base dessas medidas encontram-se interpretações não só irreais e falaciosas do ponto de vista da teoria e da história, mas sobretudo negativas acerca das razões da sociabilidade humana, das motivações comportamentais dos agentes econômicos e demais atores sociais, como ainda, negativas acerca da própria natureza e funcionamento das instituições do Estado brasileiro.
No que se refere à proposta de reforma da previdência social brasileira (PEC/06/2019), é preciso afirmar ser ela tão injusta socialmente como débil do ponto de vista econômico; sua razão de fundo é apenas de ordem contábil-financeira, nada mais. Senão, vejamos:
Razão de face e razão de fundo da proposta: embora os argumentos oficiais a justificar a reforma busquem dizer que a mesma é imprescindível para (i) garantir equilíbrio atuarial e sustentabilidade financeira a longo prazo ao sistema previdenciário público e (ii) eliminar ou restringir direitos supostamente muito frouxos ou generosos do modelo brasileiro em termos comparativos internacionais, o fato é que:
A proposta bolsonarista introduz, paralelamente ao modelo vigente de repartição intergeracional simples, um sistema de capitalização individual, que oferecerá aposentadoria por idade e benefícios associados à maternidade, incapacidade para o trabalho e pensão. Nos termos em que se encontra redigida a proposta de reforma hoje, será instaurada uma atuação concorrencial entre dois sistemas distintos que redundará no enfraquecimento progressivo do sistema de repartição, levando, no limite, à sua absoluta irrelevância como política de proteção social. Isto porque, é razoável supor que as empresas privilegiarão oferecer postos de trabalho por intermédio do novo sistema, que provavelmente virá acompanhado do lançamento de uma nova modalidade de contratação, a denominada “carteira verde e amarela”, com menos encargos e, portanto, menos direitos.
Ao estabelecer condições muito restritivas de acesso e rebaixar benefícios, a reforma pretende, na verdade, esgarçar o potencial arrecadatório por indivíduo contribuinte ao longo de sua vida laboral, seja ao encurtar o tempo de usufruto da aposentadoria após o atingimento da idade mínima (já que a esperança de vida dos brasileiros que chegam aos 65 anos, idade mínima exigida pela proposta para os homens, é pequena no geral e muito diferenciada por região e classe social no país), seja ao dificultar as próprias possibilidades de usufruto da aposentadoria (já que dada a heterogeneidade e a precariedade do mercado de trabalho brasileiro, nem todos conseguirão cumprir integralmente os novos critérios de acesso, tendo essas pessoas que serem futuramente acolhidas não pelo regime previdenciário, mas sim pelo assistencial).
A proposta de reforma bolsonarista ampliou para 70 anos a idade mínima de acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), no valor de um salário mínimo. Adicionalmente, deve-se comprovar viver em condições de miserabilidade, entendida na proposta como a obtenção de uma renda mensal per capita não superior a um quarto do salário mínimo e a posse de um patrimônio familiar inferior a R$ 98 mil. Estabeleceu-se, ainda, o direito a um benefício no valor de R$ 400 aos idosos com idade entre 60 e 69 anos e que igualmente comprovem viver nas condições supracitadas. Não é difícil perceber que as novas regras atingem, de maneira perversa, a parcela mais vulnerável da população idosa, dificultando para muitos o acesso ao benefício, especialmente aos que vivem em áreas rurais.
Dessa maneira, a sustentabilidade financeira do sistema seria garantida a longo prazo, pois mesmo que a “razão de dependência humana” (quantidade de beneficiários sobre quantidade de contribuintes) aumente, a “razão de dependência financeira” (valor gasto com benefícios previdenciários sobre valor arrecadado da população em idade ativa) diminuiria necessariamente, em magnitude suficiente para compensar o acréscimo da primeira.
Daí podermos afirmar que a razão de fundo da reforma é apenas de ordem contábil-financeira (nem sequer econômica!), cujas consequências econômicas e sociais esperadas serão:
O desmonte da previdência pública e a abertura de um filão extremamente rentável para a exploração privada dessa política social não ocorrerão sem custos sociais enormes, como demonstram as experiências de países latino-americanos e do leste europeu que optaram por trilhar esse caminho.
Com critérios de acesso mais difíceis de cumprir e com eliminação ou restrição de direitos e benefícios específicos no modelo ainda vigente, o possível lucro contábil anual do novo (mas pior!) modelo previdenciário brasileiro deverá ser deslocado da área social para outros usos menos nobres e mais arriscados, tais como o lastreamento de arranjos de financiamento do investimento público-privado (alternativa otimista) e/ou o pagamento de juros da dívida pública e sustentação financeira do endividamento fictício do Estado (alternativa não só mais plausível como de impacto estagnacionista do crescimento econômico a longo prazo).
Dados os critérios restritivos de acesso e usufruto dos direitos previdenciários, é bem provável que haja, no curto prazo, mais uma onda de antecipação de aposentadorias por parte de pessoas já elegíveis ou perto de o serem (como de fato já aconteceu por ocasião das reformas anteriores, tanto em 1998 como em 2003, por exemplo).
No médio e no longo prazos, por sua vez, é provável que haja também fuga da população em idade ativa do regime público de previdência, via informalização e precarização laboral. As alternativas seriam a migração para modelos privados de aposentadorias e pensões (hipótese otimista, dados os critérios igualmente restritivos, além de caros e arriscados, dos fundos de pensão hoje existentes), ou para opções de natureza pessoal ou familiar de autoproteção social, especialmente problemáticas em países majoritariamente desiguais, heterogêneos e pobres como o Brasil.
Bases conceituais equivocadas: não bastassem a desumanidade e a perversidade da proposta em si, por atingir fundamentalmente os situados nos estratos mais baixos da pirâmide salarial, há ainda pelo menos três coisas muito erradas em sua base conceitual.
Primeiro, reina uma concepção anacrônica do mercado de trabalho como base principal (ainda!) para o financiamento da previdência. Ora, não se pode ignorar em discussões dessa natureza que a concepção de proteção social previdenciária tal qual a conhecemos hoje surgiu em países que conseguiram universalizar o assalariamento e montar uma estrutura produtiva com um grau de homogeneidade sem paralelo em países subdesenvolvidos como o Brasil, cujo mercado de trabalho carrega consigo, como herança de sua formação sociohistórica, um desemprego estrutural e informalidade persistente, baixos salários e elevada desigualdade de renda, além de instabilidade e elevada rotatividade no emprego.
De acordo com a Pnad Contínua, do IBGE, em 2018, somando-se os trabalhadores e trabalhadoras desocupadas (12,8 milhões de pessoas), os(as) subocupados(as) por insuficiência de horas trabalhadas (6,6 milhões), e a força de trabalho potencial, incluindo desalentados(as) (7,9 milhões), são algo como 27 milhões de pessoas em idade ativa com seus potenciais produtivos desperdiçados, total ou parcialmente. Dentre os ocupados, aproximadamente 54% se inseriam no mercado de trabalho de maneira precária, sem acesso, ou com acesso bastante restrito, aos direitos sociais e trabalhistas presentes no arcabouço jurídico brasileiro. Mesmo aqueles trabalhadores e trabalhadoras que participam do mercado de trabalho como ocupados no setor privado com carteira de trabalho assinada são obrigados a conviver com uma enorme insegurança, uma vez que submetidos a altas taxas de rotatividade: de acordo com a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), do total de vínculos de empregos ativos em 2017 tão somente 23,1% possuíam cinco anos ou mais de duração. Isso significa que tais trabalhadores, por não conseguirem trilhar trajetórias ocupacionais longas e contributivas ao sistema previdenciário, dificilmente conseguirão comprovar 20 anos (que dirá 40 anos!) para obterem o direito social ao benefício da aposentadoria.
Ademais, o mundo do trabalho está em modificação estrutural, razão pela qual não faz mais sentido ancorar o principal do financiamento da seguridade social na categoria salário e muito menos na capacidade remuneratória e contributivo-atuarial das pessoas. De um lado, o assalariamento sofrerá fortes impactos diante do avanço da economia de compartilhamento e da uberização das relações de trabalho, que alçará o trabalho por “conta própria” ou “independente” a patamares antes inimagináveis. De outro lado, as estimativas são grandiosas quanto à capacidade dos avanços tecnológicos mais recentes ceifarem o trabalho humano das atividades produtivas, e não somente as do ramo industrial. A consultoria McKinsey Global Institute, em estudo recente, estimou que até 2030 entre 400 milhões e 800 milhões de pessoas perderão os seus empregos diante do avanço da robótica e da inteligência artificial. Ou seja, o financiamento ideal e promissor da seguridade e da previdência deveria gradualmente ir se deslocando da massa salarial para outras fontes mais amplas (tais como aquelas já previstas desde o natimorto Orçamento da Seguridade Social presente na Constituição Federal de 1988).
Em segundo lugar, num país desigual e heterogêneo como o Brasil, não faz sentido supor ou querer que o orçamento da seguridade social e da previdência sejam equilibrados ou superavitários em termos contábeis. Ou seja, essa lógica do autofinanciamento da seguridade e da previdência talvez ainda valha apenas para países que conseguiram universalizar o assalariamento formal atuarialmente contributivo, mas em países como o Brasil a previdência pode e deve ser financiada com tributos para além da folha salarial. Não apenas pelo fato já mencionado do mercado de trabalho brasileiro ser altamente heterogêneo, flexível e precário, como também por conta das desigualdades de raça, gênero e regionais serem muito altas, gerando situações laborais e sociais impossíveis e indesejáveis de serem equalizadas por regras uniformizadoras entre homens/mulheres, ricos/pobres, rurais/urbanos etc. Outrossim, considerando a estrutura tributária regressiva do Brasil, e o multiplicador positivo maior que 1 do gasto social e previdenciário sobre a arrecadação e o crescimento econômico,[i] é possível dizer que hoje em dia já são os trabalhadores (e os pobres mais que os ricos) que (auto)financiam (pelos impostos pagos sobre suas respectivas rendas e consumo) a maior parte dos seus próprios benefícios. Em suma, não há como mitigar a desigualdade estrutural brasileira se não for por meio do uso do fundo público com perfil redistributivo pelo lado do gasto e progressivo pelo lado da arrecadação.
Por fim, em terceiro lugar, os economistas precisam entender que, ao menos no Brasil, o gasto previdenciário não desloca o investimento discricionário, logo, não é ele contrário ao crescimento econômico. Estudos empíricos mostram que o gasto social no Brasil é componente estrutural positivo (e com multiplicador maior que 1) do crescimento econômico, bem ao contrário do gasto financeiro com pagamento de juros sobre a dívida pública, este sim o principal componente do gasto público a jogar contra o crescimento econômico, contra a sustentabilidade fiscal e contra o financiamento adequado da seguridade social brasileira no século XXI.
[i] Significa dizer que cada R$ 1,00 pago pelo governo em benefícios assistenciais e previdenciários, na medida que constitui parte importante ou principal da renda das famílias, produz efeitos positivos diretos na economia, proporcionalmente maiores que o gasto original realizado, tanto aquecendo o mercado por meio do consumo das famílias (e cuja contraparte é o faturamento e o lucro das empresas), como retornando ao caixa governamental na forma de tributos pagos diretamente sobre a renda de cada um e sobre a circulação de bens e serviços movimentados com aqueles recursos originais.
*José Celso Cardoso Jr. é doutor em Economia pelo IE-Unicamp, desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA. As opiniões aqui emitidas são de inteira responsabilidade do autor.
**Tiago Oliveira é doutor em Desenvolvimento Econômico pelo IE-Unicamp e pesquisador de pós-doutorado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.