CONTAS À VISTA
“Tem que meter a faca no Sistema S.”[1]
A afirmação dura e forte do ministro da Economia chamou a atenção para uma questão importante em matéria orçamentária, sobre a qual pouco se fala, o que não se justifica, pois envolve muito dinheiro público. E permite trazer ao debate o princípio da universalidade orçamentária, que é muito — mas superficialmente — referido nos livros didáticos, e pouco conhecido. E que deve ter sua importância ressaltada pelos operadores do Direito Financeiro. Um princípio que está intimamente ligado à transparência e à boa gestão dos recursos públicos.
Mas o que é o “Sistema S”?
O chamado Sistema S constitui-se de um conjunto de entidades que começaram a ser criadas a partir do início da década de 1940[2], voltadas a oferecer ensino e aperfeiçoamento profissional, bem como serviços de cultura e lazer ao trabalhador, mas não diretamente pelo poder público.
Para isso, foram criadas fontes de financiamento dessas entidades, por meio de contribuições parafiscais previstas em lei, que asseguram recursos a esses “serviços sociais autônomos”, entidades paraestatais com personalidade de direito privado e sem fins lucrativos, que agem em cooperação com o Estado[3]. Em razão desse financiamento por recursos de natureza pública, as entidades do Sistema S sujeitam-se à fiscalização pelo TCU, o que é bastante claro, nos termos do artigo 183 do Decreto-lei 200/67[4], e não dá margem a questionamentos voltados a querer “escapar” dessa fiscalização, como por vezes se observa[5].
Caracterizam-se por serem entidades que se dedicam “(a) a atividades privadas de interesse coletivo cuja execução não é atribuída de maneira privativa ao Estado; (b) atuam em regime de mera colaboração com o poder público; (c) possuem patrimônio e receita próprios, constituídos, majoritariamente, pelo produto das contribuições compulsórias que a própria lei de criação institui em seu favor; e (d) possuem a prerrogativa de autogerir seus recursos, inclusive no que se refere à elaboração de seus orçamentos, ao estabelecimento de prioridades e à definição de seus quadros de cargos e salários, segundo orientação política própria” (STF, RE 789.874).
Embora oficializadas pelo Estado, como destacado por Hely Lopes Meirelles, “não integram a Administração direta nem a indireta, mas trabalham ao lado do Estado, sob seu amparo, cooperando nos setores, atividades e serviços que lhes são atribuídos, por considerados de interesse específico de determinados beneficiários. (…) Vicejam ao lado do Estado e sob seu amparo, mas sem subordinação hierárquica a qualquer autoridade pública, ficando apenas vinculados ao órgão estatal mais relacionado com suas atividades, para fins de controle finalístico e prestação de contas dos dinheiros públicos recebidos para sua manutenção”[6].
O Sistema S é composto de 229 unidades, destacando-se como principais entidades: Sesi (Serviço Social da Indústria), que oferece opções culturais, de lazer e esporte, e também serviços de saúde; Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), que disponibiliza cursos e assessoria técnica; Sesc (Serviço Social do Comércio), que presta serviços de cultura, esporte e lazer; Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial), que patrocina cursos de aperfeiçoamento profissional; Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), voltado a dar apoio por meio de cursos e acesso a crédito; Senar (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural), também oferecendo cursos no setor do agronegócio; Sescoop (Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo), que dá assessoria e promove cursos voltado às cooperativas; Sest (Serviço Social do Transporte), ligado ao setor dos transportes, e oferece opções culturais, de esporte e lazer; e Senat (Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte), que promove cursos para esse setor.
E porque o ataque ao “Sistema S”?
O motivo não é difícil de adivinhar: dinheiro. Muito dinheiro. Estima-se que o Sistema S arrecade algo em torno de R$ 15 bilhões por ano com as contribuições, em dados de 2014, e R$ 20,5 bilhões no atual Orçamento[7]. Muito dinheiro e pouca transparência em seu uso, segundo seus críticos. Uma “caixa-preta”, afirma-se[8]. Motivos bastante para que se exija saber com maior detalhamento quanto dinheiro se tem aplicado no sistema, e o que exatamente é feito com ele. Verificar se o gasto está de acordo com a legislação, com seus propósitos finalísticos, e se traz benefícios para as entidades[9].
Em época de escassez de recursos, não há como se admitir mau uso de recursos públicos, cada centavo faz falta e não pode ser desperdiçado.
A reforma do Sistema S é um debate que já não é novo, e não deve mais ser postergado[10]. Samuel Pessoa chamou a atenção para o tema recentemente, lembrando que os tempos mudaram: “Entre os anos 1940 e hoje, muita água passou por baixo da ponte do Estado de bem-estar social brasileiro: universalizamos o acesso à educação fundamental e criamos rede federal e redes estaduais de ensino técnico; criamos o SUS (Sistema Único de Saúde), que é universal e integral; os diversos seguros para a terceira idade, os contributivos e os assistenciais, praticamente erradicaram a pobreza entre os idosos; e diversos seguros públicos, tais como aposentadoria por invalidez, auxílio-doença, seguro-desemprego etc.”. Isso exige maior atenção a toda e qualquer fonte de recursos públicos: “Não escaparemos nos próximos anos de fazer enorme pente-fino em todos os gastos públicos. Caso contrário, não encontraremos os R$ 300 bilhões que precisamos encontrar para mantermos o dragão quieto”[11].
Há projetos destinados a alocar parte dos recursos do Sistema S para a Seguridade Social, como o PLS 386/2016, do senador Ataídes Oliveira, que propõe que a destinação de 30% das contribuições dessas entidades sejam revertidas para o custeio da seguridade social.
O TCU, que tem trabalhos de fiscalização em andamento em várias das entidades do setor, já determinou a realização de fiscalização no Sistema S, a pedido do Congresso Nacional, para auditar as entidades e avaliar a atividade financeira nelas realizadas[12].
A preocupação com a transparência dos recursos do Sistema S se vê presente, tanto que as leis de diretrizes orçamentárias da União têm exigido que o Poder Executivo disponibilize mensalmente na internet a arrecadação mensal das contribuições para o sistema, e que as entidades divulguem suas demonstrações contábeis, discriminação das despesas, estrutura remuneratória, orçamentos, cumprimento de metas e resultados de auditorias[13].
No âmbito do Direito Financeiro, vigora o princípio da universalidade orçamentária.
Os tradicionais princípios da universalidade e da unidade são duas faces de uma mesma moeda. Previstos na própria Lei 4.320/64, em seu artigo 2º, que os consagram, também nos artigo 3º, 5º[14] e 6º[15], têm fundamento constitucional no artigo 165, parágrafo 5º. Preconizam que todas as receitas e despesas devem constar de um único documento; o primeiro princípio enfatizando a abrangência do orçamento, e o segundo, a unicidade documental. Ambos denotam a preocupação com a necessidade de clareza, precisão e transparência do orçamento, e mesmo da chamada “sinceridade orçamentária”, uma vez que o orçamento não poderá cumprir suas funções essenciais se disperso em vários documentos sem uniformidade. Marcus Abraham, professor de Direito Financeiro da Uerj, enfatiza que “todos os valores, independentemente de sua espécie, natureza, procedência ou destinação, deverão estar contidos no orçamento”, que deve prever “as despesas pelo seu valor total bruto, sem deduções ou exclusões, a fim de oferecer ao Poder Legislativo uma exata demonstração das despesas nele autorizadas”[16].
Por isso, é importante viabilizar que os recursos do Sistema S sejam abrangidos pelo orçamento público, como se tentou fazer sem sucesso recentemente: “A Comissão Mista de Orçamento decidiu não incluir no ajuste fiscal orçamento do sistema S (Sesi, Senai, Senac, Sesc, Sest, Senar e Sebrae) para 2018, estimado em R$ 20,5 bilhões. Foram rejeitadas as emendas que pretendiam vincular o orçamento do sistema ao orçamento da União”[17].
Não é razoável, e afronta a Constituição, que recursos públicos fiquem à margem do processo orçamentário, criando obstáculos à transparência e ao controle parlamentar e social. É em momentos como esse que os princípios devem mostrar sua força e papel no ordenamento jurídico, e é o que se espera do relevante, porém esquecido, princípio da universalidade orçamentária. É fundamental, portanto, que se criem mecanismos que permitam inserir plenamente o Sistema S no processo orçamentário, tornando mais democráticos, transparentes e suscetíveis de controle o uso e destino de seus recursos, que são públicos.
Nesse sentido, a assertiva do ministro da Economia, embora voltada aparentemente a conseguir uma realocação de parte dos recursos do sistema, pode colaborar para fomentar o debate sobre essa reforma, e com isso ampliar a abrangência do orçamento, incluindo-se nele os vultosos recursos do Sistema S.
Enquanto aguardamos a recuperação do presidente da República da criminosa facada que levou, e que todos torcemos seja rápida e plena, ficamos na expectativa dessa outra “facada”, dessa vez em legítima defesa do princípio da universalidade orçamentária e da transparência e bom uso dos recursos públicos.
[1] G1 – Globo.com, em 17/12/2018.
[2] O Decreto-lei 4.048/42 criou o Senai, atribuindo-lhe a competência para organizar administrar escolas de aprendizagem para industriários, com sua organização e direção sendo atribuição da Confederação Nacional da Indústria (CNI); posteriormente foram criados os demais serviços sociais autônomos.
[3] Veja-se a matéria de Bernardo Lupion, “O que é o Sistema S, quanto custa e a quem beneficia”, in Nexo Jornal, de 18/2/2019.
[4] Confirmado pelo STF (RE 789874, j. 17.9.2014, rel. min. Teori Zavascki).
[5] CNI diz que incluir o Sistema S no Orçamento é inconstitucional e não ampliará transparência. Vê-se na notícia serem os argumentos da CNI muito semelhantes aos que a OAB usa para “driblar” a competência do TCU, como já debatido neste espaço em 13/11/2018 (“OAB finalmente vai prestar contas: decisão do TCU corrige erro histórico”).
[6] Direito Administrativo Brasileiro. 29ª ed., SP: Malheiros, 2004, p. 363.
[7] Congresso deixa intacto orçamento de R$ 20 bi do Sistema S, in site Poder360, 14/1/2019.
[8] A caixa-preta do Sistema S, in Carta Capital, 12/11/2014. Veja-se sobre o tema o minucioso e detalhado trabalho do Senador Senador Ataídes Oliveira, publicado em livro editado pelo Senado Federal, Caixa-preta do Sistema S: mais de 15 bilhões/ano em dinheiro público. Brasília: Senado Federal, 2014. O Secretário Nacional de Produtividade, Emprego e Competitividade do Ministério da Economia, Carlos Alexandre da Costa, é enfático: “A transparência é mínima e as informações das entidades passadas ao TCU são inconsistentes. O patrimônio imobiliário e financeiro é gigantesco, os critérios de contratação e de gastos nem sempre são republicanos. Está na hora de abrir esta caixa-preta para a sociedade… — Veja mais em https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2019/01/13/esta-na-hora-de-abrir-a-caixa-preta-do-sistema-s-diz-secretario.htm?cmpid=copiaecola.
[9] Sobre esse tópico veja-se a obra Questões polêmicas do Sistema “S” sob a ótica do TCU, de Ubiratan Aguiar e André Aguiar, especialmente capítulo 4, pp. 45-80 (Belo Horizonte: Forum, 2015).
[10] Reforma no Sistema S gera debate acalorado, in Folha de S.Paulo, 17/5/2008.
[11] Sistema S, in Folha de S.Paulo, 13/1/2019.
[12] TCU, Acórdão 1904/2017, Plenário, Sessão de 30/8/2017, rel. Min Augusto Sherman Cavalcanti.
[13] LDO União 2019, Lei 13.707/2018, art. 131, § 1º, I, q, e art. 134.
[14] Art. 5º A Lei de Orçamento não consignará dotações globais destinadas a atender indiferentemente a despesas de pessoal, material, serviços de terceiros, transferências ou quaisquer outras, ressalvado o disposto no artigo 20 e seu parágrafo único.
[15] Art. 6º Tôdas as receitas e despesas constarão da Lei de Orçamento pelos seus totais, vedadas quaisquer deduções.
[16] Curso de Direito Financeiro. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 272.
[17] Congresso deixa intacto orçamento de R$ 20 bi do Sistema S, Poder360, 14.1.2019.
José Mauricio Conti é juiz de Direito em São Paulo, professor associado da Faculdade de Direito da USP, doutor e livre-docente em Direito Financeiro pela USP.
Conjur, 05 de fevereiro de 2019